quinta-feira, 18 de novembro de 2010

De estrangeiros, interlocutores e prestidigitadores

               “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento” - O Estrangeiro, Caetano Veloso.
              Adoro essa canção porque provoca-me a ideia de que o sentimento de não-pertencimento e de estrangeirismo guarda mais relações com o momento que se vive e com as experiências que nos passam do que necessariamente com o lugar que se viaje.
             Sinto-me, portanto, estrangeira em mim, de mim, daqueles que me são mais próximos e familiares, ainda que estejamos em interlocução permanente.
            Afinal, interlocução é isso, provocar um pensamento impensado, disparatado. Bons interlocutores são como bons prestigitadores, difíceis de achar e fáceis de crer, porque ambos já “tem esse dom de saber iludir”, para citar Caetano de novo. E as semelhanças vão além. Em verdade um bom interlocutor te surpreende e arrebata porque te diz o menos previsível. Ensaiadas no palco da vida suas tiradas serão certeiras, viscerais e críveis à maneira de um prestidigitador. E tudo o que a gente mais quer diante de um deles é a ilusão de uma certeza, temporária, mas consoladora.
              Interlocutores e presditigitadores tem lá suas janotices perfeitamente aceitáveis, conferindo-lhes até alguma elegância.
              Eu tenho sorte porque meus interlocutores são os melhores possíveis. De idades, credos e escolhas variadas brindam-me com sua sagacidade, perspicácia, generosidade, virulência e incredulidade, tão necessária para que eu rememore quem sou.
               Há, claro, na palavra janota, um outro significado, este de tolice,  parvoíce, como o é por exemplo o sujeito que vejo caminhando no Passeio quase todas as manhãs, de terno, gravata e sapatos lustros pouco usuais para uma pista de exercícios. Mas ele se deixa levar pela própria marcha e acolhemos sua condição alienígena. Afinal, dos lugares e momentos que percorremos minha fiel interlocutora e eu, avistamos melhor nosso chibante estrangeirismo.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Açúcar bruto

           Nenhum doce é o bastante para apagar o fel que se espalhou. Careço de açúcar, uma urgência que nenhum tacho de melado, marmelada ou açúcar mascavo cozidos durante os invernos de eu criança foi capaz de desfazer.
          Vivi a honradez de ver nascer canas-de-açúcar, cortá-las, pilá-las, tomar-lhes as folhas e aprontá-las para o engenho, onde lhe sacaríamos o sumo que seria levado ao tacho. Esse saber-fazer impregnou-se em mim e eu tendo a acreditar que culinária é prima da bruxaria. Assunto sobre o qual pretendo escrever qualquer dia.
          Mas a vida no campo era distante da vida na cidade e o açúcar refinado era raro em nossa casa, reservado para alimentar o bebê ou compor os doces mais seletos. Não, aqueles ainda não eram anos de comercializar informações sobre dietas naturais e lá pouca informação chegava sobre o valor do que produzíamos. De modo que sim, eu já vira açúcar cristal, mas demorei pra notar que o açúcar bruto que fazíamos guardava em si a mesma origem do açúcar cristal, tampouco especulava sobre o que era um cristal.
           Entretanto, eu ia à escola e conduzi meu primeiro caderno à classe dentro de um saco vazio de açúcar cristal. Lembro-me, como se fora hoje, a transparência do plástico omitida pelo azul das letras grandes da marca CRISTAL, seu tamanho em relação a meu pequeno caderno e lápis. Era uma embalagem de 5 kg e, coincidência ou não, lembro-me perfeitamente da primeira lição que a professora anotou em meu caderno: preencher a primeira folha com o traçado do número 5. E fico até entendendo aqueles que gastam pequenas fortunas por uma embalagem antiga: eu adoraria ter alguma memória material daqueles anos.
           Naquele tempo eu me formava de brisa do campo, de uma alegria infantil por trançar folhas e galhos sob a sombra do mandiocal, do canto dos pássaros com quem eu dividia as melhores frutas da estação encontradas nos vãos altos das árvores e suas copas, de fazer de conta que montículos irregulares de açúcar mascavo eram balas, de esperar o regresso de meus irmãos, que iam à escola, à roça, à vida, para juntos enchermos as noites com as melhores conversar e jogos de adivinhar palavras.
           Será isso que Gabriel Garcia Márquez chama de nostalgia da nostalgia?

 

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Dentes

             Dentre as sementes, as aladas são minhas favoritas. Nada exercia mais fascínio sobre minha infância que arremessar dentes-de-leão e, em vão, tentar capturar cada um dos cursos que iam desenhar no céu.
              Mesmo hoje não resisto a colher dente-de-leão que se põe em meu caminho e, claro, sigo o ritual de fazer um pedido enquanto  os assopro (“Em que crêem os que não crêem?”).
             O dente-de-leão, quando flor imatura, até lembra, remotamente, a juba de um leão. Mas de resto distanciam-se. Acho a flor mesmo tacanha e sua altivez restará ínfima se comparada a do leão. Opinião sobre a qual ainda estou indecisa.
              E depois tem a palavra dente no nome. Dente, esta aí como fato dado, até o momento em que se vai ao dentista, mais por força do hábito que por gosto. Então, o que era um dente será um iceberg. E quando nem a anestesia amaina a dor, fica-se sabendo quão grande é um dente, esquadrinhando-o à sensação, que é o jeito menos mentiroso de medir, porém o mais intraduzível e não-padronizável.
              Eu lia outro dia Gabriel Garcia Márquez dizendo do quanto queria, em criança, que seus dentes fossem móveis, para que a tia pudesse escová-los enquanto ele brincava lá fora, à maneira que ela fazia com seus dentes.
              Dente também é aquele degrau que se instaura em móveis, utensílios e pequenos tesouros quando maculados. É presença fundamental em certas ferramentas para que se produza corte.
              Às vezes, portanto, não são só as ideias que estão fora de lugar. Palavras e sensações, porque em uso, nutrem-se, levianamente, daquilo que não deveria ser mais que mera predisposição.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Um

“A quantidade de certa coisa tomada isoladamente e por inteiro.”
“Diz-se de medida ou do que é contável.”
“Diz-se do primeiro elemento de uma série.”
“Designa pessoa, animal ou coisa que ainda não havia sido mencionada ou identificada no texto ou no diálogo, de duas maneiras: Com identificação imprecisa e indeterminada tanto para o locutor quanto para o ouvinte.Com referência precisa e determinada para o locutor mas não para o ouvinte.”
Tudo isso nos diz o Houaiss sobre o UM. E um também é:
Em contar-se: o início.
Em biologia: a célula primordial.
Em psis: o fundamental.
Na relação mãe-bebe: a aposta.
Andei mesmo desatenta. Não é que este espaço já completa 1 ano, 1 mês e lá se vão não sei quantos dias...
Achei que merecia, a despeito da irregularidade, comemorar com vocês! Então, Vivas!

domingo, 7 de novembro de 2010

Meu brado

             Há tempos que me pedem para que eu volte a escrever neste espaço. Nem são tantas pessoas, mas elas têm algo em comum: me  são  caras.  Escrever, contudo, tem sido evitado por mim como forma de não cometer nenhum tipo de exorcismo. A escrita sempre foi minha tábua de salvação. Outro dia fui à conversa entre  Carpinejar e Alberto Martins.  Depois de algum tempo ouvindo-os falar de seus papéis de escritores/poetas,  resolvi lançar-lhes a pergunta que aprendi a gostar de fazer: "- Que leitores são vocês?" Carpinejar respondeu-me com um aforisma, que lhe é tão próprio:  “eu leio pra me procurar, eu escrevo pra fugir de mim”.  Alberto Martins constatou que a leitura faz inchar o cotidiano e que lhe apraz  a experiência de tê-la expandindo seu dia-a-dia -  ao eleger um catatau para ler quando não se está de férias, por exemplo.  De minha parte arrematei com aquela frase do Drummond que adoro: “A vida quando vai aos livros é pra voltar mais vida”. Contudo, nestes últimos meses, houve aqueles em que nem pude ir aos livros e nem pude ir à vida. Movi-me inerte. Porque parar, e retomar a linha onde  o ponto fora esquecido, também é mover-se.