domingo, 23 de maio de 2010

A divisa imprecisa

        O processo de aquisição de escrita em muito se assemelha ao ato de escrever em si. Superada a fase em que as questões ortográficas e a estatura da letra são os grandes dilemas, restará um outro tipo de ir e vir ao texto.
        Todo o escritor irá até o nu da palavra e a interrogará, querendo-lhe as vicissitudes. Quando minha aluna me perguntava outro dia se em nascimento cabia  c, s ou sc, pus-me a pensar que o nascimento da escrita não se faz sem interrogações intermitentes. Seja qual  for a natureza da pergunta.            
         O escritor aprendiz tem um zelo pelo desenho da letra, principalmente nas vezes primeiras em que se arrisca na letra bastão. E essa, intuo, é outra nuance eterna do ato de escrever: há que se desenhar uma ideia como se estivéssemos desenhando uma letra decisiva.
         O escritor aprendiz é extremamente minucioso com qualquer eira sobressalente, letra a letra, divisa a divisa.
         Como um aluno aprendiz de escrita, querendo que a letra seja exata, sob pena de significar outra coisa, o escritor adulto limpará o terreiro da escrita, palavra a palavra, retirando-lhe pedra solta, cisco, pó ou beira.
         O texto do escritor aprendiz é formado por ausências. O texto planeado do escritor adulto, abusará delas, requerendo a presença do leitor. O vazio será então uma estratégia do texto.
         O aluno aprendiz de escriba trafega entre modos de ler e escrever. Silabando, tateando, inferindo, adivinhando, surpreendendo-se, lendo. Migra da caixa alta para a cursiva, esforçando a letra, escrevendo.
         O escritor adulto, quase maquinalmente, escreve. Sua mente é que migra de si para si, para o mundo: silabando, tateando, inferindo, adivinhando, surpreendendo-se ao revés: lendo e escrevendo.
         Viver a aprendizagem da escrita diariamente, qual criança, muito pode ensinar ao escritor adulto.

Um comentário:

Unknown disse...

Silvia,
Seu escrito fala a mim de maneira especial, por eu gostar do tema e por gostar especialmente da forma como você o aborda. Abusar das palavras não para dotar-lhes de sentido preciso, mas, antes, para multiplicá-los. Requerer o leitor produzindo hiatos, silencios, imagens inconclusas a serem por ele desenhadas.Escrever e convidar o outro a pensar, sobre qualquer coisa que o anime.
abraço, fatima camargo