Já viram? A traça quando sai de lugar em que se deixou estar marca um vão. Imprimi aí um vácuo. É quase um decalque. Mas não é como casulo de bicho da seda ou borboleta, tampouco como casca de cobra, porque devorou. Se fez pondo a sucumbir em vez de dar vida. Não gosto de traça. Essa inútil bobeira. Esse ser ignóbil atodo tempo se fingir morto. E se ela está onde nada pode corroer, que lhe importa? Trama um jeito de, em largando ali seu visgo, fazer remanescer algo de si. Quanto a mim, que gosto de tantos seres, gosto da palavra. A palavra, como a vida, também se faz de ocos. E é no oco que eu quero estar. Quero saber o que há de frescor nisso que já não é mais. Porque aquilo que se abandona, permanece. É como casca de ferida que criança adora arrancar. Já disseram que criança faz isso é porque adora seu dodói. Os adultos também adoramos nossos doer e arrancamos cada casquinha de ferida a seco, para ver de novo o sangue invadir a pele. Porque somos viscerais. Sem volteios. Queremos saber como se faz para botar vida na crosta seca, para sentir a dor presente, que já não é a mesma, porque uma dor nunca imita a si. Por a nu a ferida quase sã é arrancar uma palavra de seu torpor.
terça-feira, 5 de agosto de 2014
domingo, 27 de julho de 2014
Para ler
A qualquer hora do dia, vaga, leio-lhe e perscruto-lhe. Entre idas e
vindas um pensamento toma-me de assalto: de restos e esboços também se faz um personagem de si. Da junção de quase nada útil se insinua uma obra.
Entre distraído e absorto, chega-se repentinamente a essa dança fugaz.
Então, se houver palco, haverá ato.
Ler requer várias investidas, à maneira da escrita. E é só de um
ventre vigoroso que
pode nascer a escritura. É como no ato
amoroso: uma ação não desfaz a outra, como vacilos e pensamentos
inesperados são bem-vindos.
Ler não requer só ferramentas e aparatos racionais: atravessamentos de
opiniões, voluptuosidade, ecos, carícias, sussurros longínquos, recuos, tensão
viril, infusões passionais, olhares
atônitos, qualquer luz lúgubre compõem
a cena.
São sempre plurais as leituras, especialmente quando passíveis de intervenções perturbadoras, aprazíveis, avassaladoras.
Se assim for, quando
concluídas, findam? Ou seus efeitos reverberativos permanecerão?
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amorisidade,
escrever,
ler,
Palavra
quinta-feira, 17 de julho de 2014
Do amor até a palavra
Onde meus afetos? Eu os perco no
caminho, como aquele sapatinho vermelho
que perdi na infância. Lavo-me. Banho-me demoradamente e caio em tentação. Descuido-me. Tento despir-me de qualquer ideia impregnada. Vem uma palavra e atira promessas. Recuo. Ignoro.
Finjo não ver. As palavras também são seres
voláteis. Elas se oferecem e me abandonam com a mesma fugacidade com que sirvo à luz do dia.
Essa fronteira irrisória entre o que sou e o
que pretendo ser, isso ensina-me a
palavra. E fico fazendo-me de esquecimentos, de mal-entendidos, de disfarces, porque
uma vida não se dá, uma vida se inventa. Uma vida é um arremesso contra a descrença,
um quase, uma punhalada na covardia.
As palavras são viscerais e, estáticas, restam
aí juntando pó, dando nó como
correntinhas de ouro finas demais,
embrulha um pouquinho para ver no que dá? Abandone-as, ainda que
involuntariamente e, quando voltar a si, não mais se distinguirá começo e
ocaso... E será preciso muito tempo para
desemaranhar o nó. Porque palavra na garganta é isso: uma distração que sofre. O
vil metal, tomado a desleixo.
terça-feira, 8 de julho de 2014
Poeminha nascido com ares de um pássaro
Quero-lhe no nada. Quero-lhe tudo.
Quero seu avesso. Sua verdade inaugural.
Quero-lhe tantas quantas forem suas facetas e que, ocasionalmente, diga-me aquilo que nunca pudestes dar.
Quero-lhe para além do ruído cotidiano.
Quero-lhe até não saber precisar o que a mim ou a ti pertence.
Quero-lhe em cada lampejo de lucidez e alegria. Quero-lhe assim: na incongruência, como quero seu inferno e todas as sombras que desenham sua solidão ou espraiam suas nuances.
Quero-lhe, à medida que o tempo passa, em cada uma de suas novas acepções.
Quero-lhe no gozo pouco previsível.
Quero-lhe a um só tempo inesperado e fronteiriço.
Quero-lhe na vastidão do segredo, na intimidade ignorada, na imprecisão contumaz.
Quero-lhe para quando eu não puder me fazer ouvir e você nada puder nomear.
Quero-lhe em cada vicissitude e para não sucumbir ao enfado.
Quero-lhe para viver idiossincrasias.
Quero-lhe na ferida exposta e para quando não se puder extirpar a dor.
Quero-lhe, com amor, enfim: palavra!
terça-feira, 22 de abril de 2014
Decalcomania
Ela sempre teve
dificuldade de usar o que lhe é dado: das lâminas de decalcolagem ganhas na infância, cujo destino fácil era virarem enfeites na pia ou geladeira azul de sua mãe, às benesses do presente. Por isso amarrava-se
ao passado.
Ela abominava aquelas arranjos artificiais decalcados na geladeira amarela da vizinha. Ela sempre teve decalcomanias em casa, mas e onde a coragem de usá-las.? O mesmo se dava com as cartelas de adesivos
decorativos. E o que dizer do jogo de lençol que ganhou na década de 90? Lá, erguido na última
prateleira do armário, juntando marca amarelada no vinco. Cadê coragem de
usar lençol tão branco?
Hoje, filhos
crescidos, netos crescidos, cabelos brancos, um presentinho ou outro guardado
ainda na embalagem e um resfriado que não cede. Família vem no pacote, pensa. Ovo de páscoa da data passada, ainda
embrulhado, rato roeu... Farelo bordado de
papel reluzente caído do bolso do único terno roto pendurado no armário.
Isso. Esse fiozinho de existência. Esta vida comezinha. Essa certeza de sentimento, fininha, qual papel laminado de ovo de páscoa.
Nas decalcomanias, lê
em Walter Benjamim, as cores flutuam
aladas sobre todas as coisas.
Marcadores:
Decalcomania,
ovo de páscoa,
presentes
sexta-feira, 11 de abril de 2014
Fins
Todo fim de feira é
assim: xepas de aqui e acolá. É como
palco de teatro que, depois de ter cedido lugar ao evento principal, esvaído de público, perfaz-se de restos. Assim seria também a sala de aula ideal? O
que sobra quando saídos alunos e professores? E que pensamentos ocupam o coveiro, depois que todos se
foram e o que parece restar é terra revolvida, um corpo defunto e cimento fresco? Que
coisas assolam as gentes que ficam
quando alguém se despede? E todo fim de festa é assim? Restos, sobras, excessos,
a fineza derretida em maquiagens já lúgubres, a roupa amarrotada, uma sensação
a mais de felicidade acondicionada, com data e hora de validade. Quanto durará?
quinta-feira, 10 de abril de 2014
Assim é (se lhe parece)
Que a gente é o que é,
é uma dessas impressões que vira e mexe assalta a cabeça da
gente. Agora que a gente possa se reconhecer nesses tantos outros que podemos
ser e ignoramos, é o mais contundente. Devaneios tomam-nos de assalto.
A manicure
adolescente, um turno na escola, outro no
salão de beleza, piercing reluzente no nariz, maquilagem à Ammy
Winehouse, barriguinha ora à mostra
ora mal disfarçada sobre a blusinha amarela choque expondo dobrinhas de farta ansiedade
e ilusão, comenta com a amiga ao
lado: “Minha unha nunca mais foi a mesma
desde que arranjei esse emprego aqui”. E assevera: “olho gordo”.
quarta-feira, 9 de abril de 2014
Canteiro de obras
Ideias para um texto e
nenhuma soberana o suficiente. E a encomenda? Pra quando é mesmo? – pergunta ao imaginário editor de si.
As ferramentas ali, o canteiro de obra aberto, colher de pedreiro, ruído
de serras segmentando treliças e
vergalhões, cinto de segurança mantendo-a suspensa na armação de aço, escavadeiras
rompendo o solo amalgamado. Onde se pisa quando o chão rui? Onde se acomoda
sentimento quando a pergunta não dá
trégua? Esse visgo imaginário sempre foi sua
viga mestra? Ela ali, tentando escrever, o texto aberto. O líquido verde do nível acumulado em uma das
extremidades, forçando-a a perceber que
o escrito pendia para um lado. Confusa, entre um ruído e outro, pensa: o aeroporto é só um
não-lugar. As reformas atestam isso. Tudo imagem da infância. Não é licito usar
imagem da infância? E se a família não gostar? E se nem parecer que foi mesmo? Pega formão, plaina, picão, serrinha a quatro mãos, pois nunca se sabe o que demandará um texto. Às vezes, o que ele exige são armas de fogo, outras... Um
texto é isso. Matéria em estado bruto. Tal qual sentimento inominado.
sexta-feira, 14 de março de 2014
Arqueologia urbana
Ele sonhava em fazer de seus achados um roteiro. Tal qual um
mapa com o qual se pudesse operar cidades. Uma vez, achou, em bairro que pouco
distava do centro, um ninho de passarinho avassalado de intempérie. Deu nisso. Pôs-se a esquadrinhar não só
pássaro fêmea de olhar perscrutador sob o ninho arremetido ao
chão, mas os hábitos vizinhos.
Onde eles?
Fios coloridos de outrora engrenagens cibernéticas, parte do
que fora pompom de roupa de criança, cabelos e pelos de animais variados,
díspares galhinhos, um anel plástico que
selara a cachaça mais barata, gripa e
palhinhas da estação passada, rotas
folhas, impressos arruinados pela inclemência
de tempos urgentes, paina amarfanhada e
outros restos menos prováveis se juntavam. Isso, mais penugens arrancadas ao dono, compunha o
intricado berço agora coroado de vazio.
Ao largo, buzina de
carro, ônibus freando para passar lombada, canos de escapes rotos, estridências, conversas cruzadas; a cunhada, a cunhada da esposa, a vó, a bisa, o pai, o filho. Ruídos de família. O menino, recém-saído da fralda, rodeava-o,
convencendo-o de que, sob a réstia de luz, valia a pena plantar grãos de milho
num canto secundário do terreno financiado.
Ele ali, vizinho,vizinhos, um
olho no ninho, outro no filho com a mão esbugalhando semente. Dentro, fora, o sagaz silêncio.
quinta-feira, 13 de março de 2014
A maioridade
Vinte e um anos morando na cidade grande e parcas habilidades ainda de
transitar entre os citadinos.
Todo dia era isso, ele acordava, uma
ideia renitente comprimindo o
peito: “E se não passar de hoje? E se descobrirem a grande farsa que em mim se
assenta?”
Ele não era dali, ele
nunca poderia saber o que era ter
nascido e erigido, aí, seu castelo de
conveniências. Por isso ele gostava de trabalhos impossíveis. De preferência
encomendados, daqueles brabos, com data e hora para finalizar.
Não era a sua praia, nunca seria, mas às vezes achava que
deveria estar em uma agência de publicidade. - “Não é isso que dizem? Que
marqueteiro tem deadline? Meia noite
e... o último expiro! E o glamour da
publicidade? Ela que se confunde com o
nobre pressuposto de comunicar? Arras! Qual o que?”
Só ideias. Isso. Ele era isso, só ideia. Nenhuma
mulher, algum emprego, contas no escaninho da portaria do prédio,
poucos amigos e um ermo de sentimento.
Mas uma coisa era certa, todo dia, às 6:45,
ele haveria de estar lá, na praça Rui Barbosa, exibindo musculatura e
parcimônia em exercícios orientais. “Aqueles, sabe? Aqueles que formam desenhos no ar.”
Ele
não supõe, mas sua disciplina chinesa, em movimentos sincopados, braço direito encontrando no ar a mão esquerda, e o reverso, braços e pernas abertos - da visão do homem
vitruviano à simetria do universo... Ele
não saberá, mas seus fugazes
desenhos chineses iludem a moça triste que passa e,
desavisadamente, esquece de avançar no
sinal verde, capturada pela ideia que,
ela imagina, deve acometer o talvez estrangeiro: “Cada um é cada um. Um
dia ainda encontro a justa medida! Aí então serei tal qual um citadino.”
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