domingo, 30 de maio de 2010

Pipoca

         Pipoca é um grão absurdo. Desde a infância exerceu sobre mim seus poderes e mistérios. Um grão que podia ser e não ser milho. Em verdade aquelas varietais que cultivávamos tinham quase um espinho na ponta de cada grão, dificultando a tarefa de debulhá-las a mão. Mesmo assim, diferente do milho que, só quando muito jovem ou moído, mostrar-se-ia tenro e gentil, a pipoca fazia-se mais dócil e macia quando à boca.
          Que os grãos estourassem, era puro nonsense. Mas a isso acresciam-se os mitos e jogos de palavras. Durante o ato de estourar pipoca nós crianças tínhamos que “por o dedo no umbigo e esperar embaixo da mesa”, diziam umas vizinhas. Tínhamos que “pensar numa fofoqueira”, diziam aquelas que não se julgavam merecedoras de tão controverso adjetivo. Tínhamos que “pronunciar repetidamente um trava-língua sentença: 'Estoura pipoca, Maria pororoca'”, durante todo o tempo até que cessassem as explosões.
         Mas aquelas não eram terras de pororocas. E por que o nome de minha mãe entrava, de lambuja, no enunciado?
        Gosto de pipoca, como gosto de abóbora, batata doce, cana-de-açúcar, milho verde e tudo o que remeta ao cardápio da vida no campo. Mas pipoca tem sua nobreza. Com ela se faz trocadilhos e adivinhas. Da flor à pedra inócua, cada grão porta um mistério.
        Arrebentar  pipoca é como viver a vida: pequenas explosões que se sucedem. Precisa-se do todo para ter uma noção do conjunto. Precisa-se da parte para não perder a noção de realidade. Nuances.
          Estalar pipoca é transformar um grão em monumento.
        Devora-se  uma  grande quantidade de pipoca para sentir-se momentaneamente completo, como de devorar ilusões se faz a vida.
         Pipoca é fugaz como felicidade e repentina como vida.
        
         O que é, o que é? Que pula pra cima e se veste de noiva?

domingo, 23 de maio de 2010

A divisa imprecisa

        O processo de aquisição de escrita em muito se assemelha ao ato de escrever em si. Superada a fase em que as questões ortográficas e a estatura da letra são os grandes dilemas, restará um outro tipo de ir e vir ao texto.
        Todo o escritor irá até o nu da palavra e a interrogará, querendo-lhe as vicissitudes. Quando minha aluna me perguntava outro dia se em nascimento cabia  c, s ou sc, pus-me a pensar que o nascimento da escrita não se faz sem interrogações intermitentes. Seja qual  for a natureza da pergunta.            
         O escritor aprendiz tem um zelo pelo desenho da letra, principalmente nas vezes primeiras em que se arrisca na letra bastão. E essa, intuo, é outra nuance eterna do ato de escrever: há que se desenhar uma ideia como se estivéssemos desenhando uma letra decisiva.
         O escritor aprendiz é extremamente minucioso com qualquer eira sobressalente, letra a letra, divisa a divisa.
         Como um aluno aprendiz de escrita, querendo que a letra seja exata, sob pena de significar outra coisa, o escritor adulto limpará o terreiro da escrita, palavra a palavra, retirando-lhe pedra solta, cisco, pó ou beira.
         O texto do escritor aprendiz é formado por ausências. O texto planeado do escritor adulto, abusará delas, requerendo a presença do leitor. O vazio será então uma estratégia do texto.
         O aluno aprendiz de escriba trafega entre modos de ler e escrever. Silabando, tateando, inferindo, adivinhando, surpreendendo-se, lendo. Migra da caixa alta para a cursiva, esforçando a letra, escrevendo.
         O escritor adulto, quase maquinalmente, escreve. Sua mente é que migra de si para si, para o mundo: silabando, tateando, inferindo, adivinhando, surpreendendo-se ao revés: lendo e escrevendo.
         Viver a aprendizagem da escrita diariamente, qual criança, muito pode ensinar ao escritor adulto.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

À parte

       Aquele homem, com os ares de urgência de sempre, não sabia chamar um filho só. Dizia, como lhe viesse à boca, o nome de todos. Menoscabava a primogenitura. Então, aquela filha, por ser uma das mais novas, permanecia sendo “Esta”. Depois de dizer: "Clara, Amélia, Maria", o último nome, o desejado, como que escapava-lhe à boca: “Esta”.
        Ela, em princípio, atribuiu tal atitude a espasmos de bom humor do pai. Raro. Mas depois cresceu. Viu que só poderia ser nomeada em presença dele. E ele não sabia chamar os filhos um a um.
        Corporificada, nominada só em pronome demonstrativo.
        Pai de todos, só poderia chamá-los qual corpus homogêneo.
        Os filhos, juntos, uma entidade.
        Isso fez influência nas maneiras  dela chamar sentimento. Numa série, qual escolher?
        Ela ficava horas olhando para a cor do dia, como se dentre matizes, pudesse dizer um nome. E sem nome que dar, atirava: “Esta”.