sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Autómaten

Que alimento coincidirá com essa fome?
Que pergunta moverá esse desejo?
Que cor alegrará esses olhos?
Que roupa traduzirá esse ânimo?
Que amigo acolherá esse riso?
Que noites engolirão essa ânsia?
Que lugar abrigará essa certeza?
Que amante escutará esse silêncio?
Que pássaros suplantarão esse grito?
Que autômato governaria a palavra?
Que serei eu?

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Como chama

Quando se come pipoca e aquela casquinha fica entre sua gengiva e seu dente?
Quando um cílio insiste em se aconchegar no seu olho?
Quando se confundem um restinho de unha, cutícula e pelezinha ali na volta do seu dedo?
Quando sua belezinha de nascença sente uma coceirinha?
Quando ao olhar amorosamente para o couro cabeludo se percebe que os fios crescem em linhas e direituras que não se supunha?
Quando, no instante do arrepio, sua pele faz montinhos de si mesma?
Quando o primeiro sangue inunda a ferida aberta?
Quando o resfriado começa e dói só uma beira da sua garganta?
Quando você não pode se ver se vendo no espelho?
Quando um sentimento é vago e preciso?

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Aquela Mãe, Aquela Filha

        Aquela Mãe e aquela Filha raramente passeavam a sós. Pouco ficavam juntas embora estivessem sempre lado a lado. Porque a Mãe tinha muitos filhos e afazeres. Porque a Filha entendeu que as tarefas da Mãe também eram suas e pôs-se a trabalho.
       Quando a Mãe contou que elas, só as duas, fariam uma viagem para visitar parentes, a Menina tomou aquele momento inaugural como a chance de ficar vadiando palavras e colos.
       Chegando à cidade, depois de abraços efusivos por saudades latentes, as duas mulheres, Irmã e Tia, saíram para passear e quem cuidou da Menina foi um completo estranho, tido por seu irmão. Tentaram brincar em uma escada cercada por paredes formando um corredor obscuro.
        Nessa primeira ausência da Mãe a Filha chorou intermitentemente.  Para a Filha criança as duas mulheres demoraram muito a voltar e  Ela precisava tanto que sua Mãe chegasse para ordenar-lhe o mundo.
        Quando enfim retornaram a primeira revelação à Filha, sobrinha, foi:
         - “A tia comprou-lhe uma boneca linda, diferente de todas as outras”. Conceito que a menina não poderia entender, pois que não tinha nenhuma. “Mas os lugares e passeios foram tantos e a excitação tamanha que a perdermos”.
         - “E não voltaram para procurar?”, replicou a Menina sofregamente.
         - “Até arriscamos... Mas e tanta rua? E toda gente?”
         De modo que a Menina sabe que um dia ganhou uma boneca sem nunca tê-la recebido. Tem esta certeza e outras poucas.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Larápios

       Eles vinham um a um. Eles vinham em bandos. Eles se serviam do grão recém-colhido, do alimento reservado para a entre safra, do queijo que curava à prateleira no frescor do porão, de restos. Eles deixavam seus rastros, seus odores e pêlos. Eles enchiam a noite com seus guinchos e chiados e corridinhas de corte à fêmea. Eles invadiam o paiol, a estrebaria, o chiqueiro e a casa com seus ares de urgência. Traziam ninhadas de filhotes tão frágeis que não guardavam sinal da sinistra criatura que os originara ou nas quais se transformariam em breve. Se perseguidos caberiam em qualquer vão. Se irados se embrenhariam em toda fresta. Se acuados investiriam contra qualquer matéria. Se amedrontados espalhariam sua urina ácida e inconfundível. Se famintos roeriam quaisquer corpos. Eram ratos, incontável número deles, que enchiam de horror e náusea aqueles tempos que os outros ousaram chamar de nossa infância.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Os seus outros

        Na casa deserta, pequenos ruídos ao longe. A torneira antiga pinga. O vento dá sacudidelas nas folhas do pé de boldo - que o tempo está indigesto. A cortina esvoaça. Os filhos dos outros a chorarem dores impronunciáveis. O casal do cômodo ao lado a emanar o líquido surdo de seus gozos.
        Jogada ao chão, a cabeça doendo, Ela respira superficialmente e, quando lembra, ouve os mesmos discos de há décadas. Fica existindo e envelhecendo, existindo e.
        Ela, que só sabe repousar em nostalgia, pergunta-se: onde estão todos? Escolheram seus caminhos e trilharam o rumo azul do infinito? Folgarão em outras quimeras?

domingo, 25 de outubro de 2009

Para encher um domingo

Quase uma dúzia de imagens colhidas ao caminhar pelo domingo:
Uma caixa de correio presa à porta do cemitério.
Uma árvore cor-de-rosa.
Um corvo à Edgar Alan Poe procurando restos.
Um ganso lustrando as penas azuis.
Um esqueleto dócil sorrindo à janela.
Um varal com desenhos infantis preenchendo a sala de estar.
Um gato preto guardando a casa vazia.
Dezenas de abóboras enfeitando uma árvore púrpura.
Um pescador com seu barco às costas.
As árvores em seus trajes de gala outonais desfilando em tapetes de folhas.

sábado, 24 de outubro de 2009

Mensagem para você

         O computador deu agora de achar que é gente. Acha-se no direito de interagir e reivindicar atenção. Uma besta achando-se capaz de pensamentos complexos e voluntários. Hoje, porque eu pressionava extensivamente um par de teclas qualquer, ele julgou por si próprio que eu estava querendo instalar algum tipo de ferramenta para pessoas inaptas em algum sentido. Que as máquinas se transformem e se prestem a tão nobres fins como o de facilitar a vida das pessoas com qualquer deficiência é coisa que eu julgo louvável. Agora essas mensagens não solicitadas me põem nervosa.
         Outro dia, ele insistia em me informar que tinha atualizações inadiáveis a executar a fim de continuar operando. Que eu interrompesse tudo o que estivesse a fazer, fechasse as variadas janelas e páginas nas quais navegava, porque ele tinha suas urgências. Ora essa! Quem essa máquina acha que pensa que é para se autorizar a julgar, melhor do que eu, o que seria prioritário no meu dia?
        E a lista segue, ele também concluiu que preciso ter contadas as palavras que digitei. Disparate. Deve ter desconfiado que eu agora escrevo para um blog e quer me induzir a poupar os leitores de passagens longas, não raro tidas como cansativas pelos navegantes mais modernosos.
        Mas não vou me render. Que venham acusações irônicas de que não estou habilitada para operá-lo. Que me ataquem vírus perigosíssimos. Que se cansem os leitores. Eu me nego a ser teleguiada pela máquina que ainda está aqui para me servir. Pelo menos por enquanto.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A dona da terra

       Chamavam-lhe a Dona da terra. Ela não era tudo isso. Só tinha sob seu domínio um exíguo pedaço de chão, mas dava-o por grande coisa. Ninguém entendia muito os seus modos, as suas cores. Ela sempre postergava a abertura da porta antes de deixar a visita entrar. Se sozinha em casa Ela falava muito. Dizia ter um marido, mas ele nunca fora visto. Ela preferia conviver com os ratos à deixa-los expostos aos perigos de armadilhas que poderiam conduzi-los à morte por inanição.
      Ela era meticulosa em separar os restos de comida que entregava aos bichos, mas não se poderia adivinhar ao certo o padrão de organização  que empregava dentro da própria casa. Dispersos pelo vão da entrada, sala, cozinha e quarto estavam pacotes de compras não guardadas, louça por lavar, roupas, café amanhecido, perucas, ovos, manuscritos, flores secas, um relógio de parede à Dalí, batom,  pijamas, livros, grampo de cabelo e máquinas para fins variados. Caso alguém passasse inesperadamente sob sua janela, Ela certamente apagaria a luz para não ser vista. Mas isso os outros demoraram para notar e associar às razões de fato.
       Ela recebia adjetivos vários.
       Os que ansiavam por seus conselhos tomavam-lhe por: - “direita.”
       Quando aparava arestas entre vizinhos em pé de guerra diziam-lhe: - “justa."
       Aconchegando os falíveis na fé era a: - “crente fervorosa.”
       Se queriam colher frutas de seu pomar sorriam-lhe um: -“generosa.”
       Se careciam de sua ajuda diziam-lhe: -“gentil e pronta”.
       Se o que queriam era algum dinheiro emprestado floreavam dando-a por: - “de um coração sem paralelo.”
      Se era para arrendar um pedaço de sua terra gritavam: -“preço exorbitante, ladra.”
      Se Ela solicitava algo que lhe haviam tomado emprestado, arremessavam: - “egoísta de uma figa, sovina.”
      Se cobiçavam seus favores, galanteadoramente forçam um: -“bem dotada.”
       Quando cedia aos prazeres da carne, taxavam-lhe: -“safada.”
       Se não servia aos pedidos menos castos dos machos sedentos, atiravam-lhe um: “vaca.”
       A despeito de seus zelos, aconteceu certa feita de um vizinho vê-la na intimidade solitária da casa.
       - “Não, não poderia ser a mesma mulher de à luz do dia!”, pensou ele. Ela tinha uma fúria nos modos. Ares vampirescos. Sua cabeça era nua exceto por um ou outro montículo de cabelo longuíssimo em desalinho. Parecia velha como se já vivera em muitos mundos.
       Para salvar o vizinho, imobilizado em tremores e olhares invasivos, apagou a luz e deixou que ele seguisse. Ela restou sozinha na casa amornando ovos para o jantar. Desfaria o fogo antes que perdessem o visgo e beberia uma dúzia deles naquela noite.
        À espera do próximo adjetivo, ligou o rádio bem alto no seu folk predileto e, dançando em meio às luzes soturnas, adormeceu.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Em estado

        Quando em estado natural Ela gosta de contar estrelas e perder-se fazendo isso. Tenta delimitar algum espaço na imensidão brilhante e formar figuras ou escolher um relevo luminoso e traçar um caminho.
      Quando em estado descomedido Ela gosta de colecionar momentaneamente um punhado de sementes e depois jogá-las ao léu. Gosta de carregar pequenos caules de flores de um lado a outro. Gosta de romper vagem e ver as sementes pularem loucas e de algum modo quer segurar todas e, sabendo da impossibilidade, deixa-se estar nesse momento.
       Quando em estado de criança Ela teria dito: “Mãe, eu gosto de brincar comigo; eu me dou tão bem comigo.” E a mãe riu com desdém desavisado, intuindo que aquela era uma centelha isolacionista que viera para ficar.
      Quando em estado vacilante Ela trava batalhas a cada dia ou sentimento estranho que se aproxima e ambiciona ser salvo. Ela então quer ser alegre, é triste. Quer migalhas de bom humor, mas bebe da própria bílis.
       Quando em estado bruto Ela é capaz de achar bonita uma caixa de cimento fresco sob à luz da manhã.
        Ela quer aprender viver destas coisas que não sabe dizer.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

As janelas

      Do alto da minha janela avisto as figuras do sem fim. Da janela há quem se ponha a espreitar os vizinhos ou simplesmente deixe-se e coloque-se a ver a vida passar entrecortada. Do vão da janela derrubam-se coisas, às vezes salvas por um fio  agudo e fino de vida que escorre. Da janela também se lança o suicida, no impulso de enfim agir e poder viver na sua escolha. As janelas nos salvam do desvario ou nos arremessam nele. Eu sempre consulto as janelas e tento adivinhar a cor do dia. Mas quase nunca acerto.
      A vida é um vão.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A moça séria

        A moça séria espreitava os bolsos do dia, e perguntava-se: onde o inusitado? À vidraça, espiava lagartixas imóveis e pequenos colibris que degustavam aromas. Compunha-se em delirantes palavras. Perdia-se em divagações anímicas para reencontrar-se em outras plagas, enfrentando a própria obscuridade. Lutava guerras inexistentes e, exaurida, aguardava a noite chegar, sonhando percorrer outras searas.
       Quando a aura da manhã penetrava o quarto lúgubre, acordava com os pés no abismo e, não sem grande esforço, desfazia-se das vestes noturnas e da ânsia de viver. Deixava-se existir em pequenos prazeres e ardentes tremores nos mistérios diários.
       Naquela manhã a poeira espessa sobre a janela tornava a luz ainda mais surda. A moça, que ainda não sabia se acordara para viver a dor daquele dia, bruscamente levantou-se. De soslaio, viu Mistérios, de Ligia Fagundes Teles, ao pé da alcova. Olhou candidamente para os sinais negros desenhados sobre a folha amarelada, outrora cor de neve. Abriu o livro, percorrendo cada página com a delicadeza de pétala que lhe era inerente. Leu, com cabuloso espanto, o conto em que as formigas eram interrompidas em seus afazeres: estavam a remontar o alvo esqueleto anão escondido sob a cama antiga, deitada ao sótão do casebre decadente e belo.
          O pavor experimentado pelas formigas e personagens, mal sabia a moça, também lhe espiava. Terminado o conto, fechou o livro, agarrou-se a cama e por entre seus lençóis irrompeu uma minúscula criaturinha negra. Desconfiada, a moça encarou-a, lembrando-se do amargor que lhe causara a infância quando desavisadamente degustava formigas e outras espécies de miudezas.
         Mirando a insuspeita formiga que folgava em quimeras alheias, acariciou-a acolhendo seu pedido de salvação e desejando que desaparecesse.
         A criaturinha deu cabo de si mesma e nunca mais foi vista. Quanto à moça, dizem, depois dessa feita, vive a espreitar a fina luz da aurora a perguntar-se se um dia elas virão em bandos e ordenarão seus ossos em meio ao torpor matinal.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Abusada, eu profanarei

         De tempos em tempos abuso de palavras. Eu odeio abusar de certar palavras. Tão logo me apercebo violando palavras, já não quero mais usá-las. Porque aí elas já viraram minhas muletas e palavra nenhuma é vil a ponto de sofrer tão malfadado fim.
      Estranhamente eu acho justo e divertido que alguém repita insistentemente uma gíria. Talvez porque às vezes há palavra que não me larga, forçando-me a escolhê-la.
         Mas, pretensiosamente almejo pronunciar um dia: Eu profanei a língua! Um dia eu hei de capturar a língua aí, em seu estado virginal, descarnado, qual corpo aberto e ferida exposta. E então, vou deitar e rolar sobre as palavras e corpos. Pedalarei máquinas de coser palavras e bordarei tecidos novos, e figurarei babados intransigentes, e abortarei palavras empregadas toscamente e gozarei em cada célula de palavra recém-nascida.
         Eu profanarei. E a isso hei de chamar o meu avesso, a minha prosa, o meu verso.

domingo, 18 de outubro de 2009

O fato domingueiro

        Há gentes que nem trajando o fato domingueiro, como se chama em Portugal a roupa mais formal ou a reservada para ocasiões especiais, consegue fazer um domingo. Talvez seja justamente porque para se viver um domingo, como para se viver uma vida, não se pode estar emproado em repertórios fixos e aparências vãs. Para merecer um domingo, há que se desejá-lo. Mas como é difícil saber o que, de fato, se deseja.
       Lá vou eu inventar meu domingo. E vocês?

sábado, 17 de outubro de 2009

Todos os caminhos levam à Roma

         Quer bicho mais capcioso que formiga? Elas simplesmente desconsideram a gravidade, a elegância e os bons costumes. E quando menos se espera, lá estão elas dentro das gavetas e armários, lambendo seu pote de mel, enfiando-se em qualquer fresta, ignorando qualquer etiqueta, dispensando qualquer convite e adentrando o menor dos recintos.
          Tentei ser ácida: dei-lhes limão, vinagre.
          Tentei ser aromática: tratei-as com canela em rama, noz-moscada, cravos-da-índia.
         Tentei ser nobre e respeitosa: ofereci-lhes folhas de louro.
         Tentei ser diplomática e burocrata: rejeitaram meus pedidos de que deixassem o recinto e afrontaram minhas ordens de despejos.
         Tentei ser persistentemente maligna, esganando-as uma a uma ou macerando-as aos bandos, enxotando-as da minha cozinha, varrendo-as para fora do meu terreiro, condenando-as deliberadamente aos piores castigos, como morrerem escaldadas.
        Arrependida, abandonei a truculência e dei-me por vencida. Qual o que? Querem ficar por aqui? Agora emprego métodos mui amenos e, mesmo sem discutir a relação, seguimos juntas.
      A receita? Simples. Alimento-as periodicamente com os melhores açúcares. Parcimoniosamente deixo-lhes bom punhado de grãos finos na borda do vão, entre o piso e parede, que conduz ao formigueiro. Elas os perscrutam com as minúcias usuais e põem-se a carregá-los para dentro de seus labirintos inalcançáveis.
      Sigo minha vidinha e elas seguem a delas.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Professores, Moinhos e Gigantes

      Moinhos podem ser os da minha infância, movidos a água, feitos de pedras, encobertos de pó e restos. Eram máquinas de operar milagres e transformar grãos em farinha, folhas em erva-mate, grãos brutos em grãos descascados.
      Em outras plagas aprendi sobre os Moinhos de vento, grandiloqüentes e velozes.
      Ney Matogrosso canta lindamente “Os ventos Norte não movem moinhos”, pondo-me a pensar quais esforços merecem ser feitos, quais resultam em fins inesperados e quantas podem ser as variáveis de um mesmo vento.
      Rendeu em meu eito a mirabolante imaginação de Cervantes. Os moinhos que Dom Quixote vê são para mim os mais belos, porque inventados.
      Conversando com a obra de Cervantes, António Gedeão escreve o poema “Impressão Digital” e parafraseando digo: se quisermos ver gigantes serão gigantes, se quisermos ver moinhos, serão moinhos. Porque a vida também depende de nossa imaginação.
      Para completar o repertório de estesias, como esquecer os Moinhos saídos de Rembrandt?
      Comemorou-se ontem o dia do Professor no Brasil. Como acredito que certas belezas estão aí para serem celebradas todos os dias quero desejar que todos nós, professores, possamos ensinar nossos alunos e parceiros aprendizes a enxergar moinhos e gigantes.
      E longa vida aos que aram nessa seara e são, simultaneamente, professores, moinhos e gigantes.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

“Provavelmente, a vida é redonda.”

          Foi com essa intrigante declaração de Van Gogh que me deparei dias atrás quando lia A Poética do Espaço, de Bachelar. E ela me fez recordar meus primeiro anos na Escola Básica Volta Redonda. Esse nome me parecia uma redundância. Sim, se era uma escola, deveria ser basilar, fundante, como devem ser tais instituições. Agora como uma volta poderia não ser redonda? Seria então elíptica? Esta última  foi uma pergunta que eu não me fiz, nem meus professores me encorajaram a fazer naqueles anos e que meus parcos conhecimentos de Física não me permitiram responder. Tanto melhor! Fiquei para sempre intrigada com a história da volta redonda e agora Van Gogh me responde: “Provavelmente, a vida é redonda.” E isso me basta para seguir perguntando: que raios querem dizer com isso?

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Compaixão e penas nacaradas


         Em fins de setembro estiveram reunidos em Vancouver os laureados com o Nobel da Paz: Betty Williams e Mairead Maguire (que partilharam o Prêmio Nobel em 1976), Dalai Lama (Prêmio Nobel em 1989), representando Desmond Tutu (Prêmio Nobel em 1984) estava sua filha Rev. Mpho Tutu- e Jody Williams (Prêmio Nobel em 1997).
         O encontro, chamado Connections for Peace (Conecções pela Paz), tinha como tema a compaixão. Assim resumo simploriamente as declarações: A compaixão implica uma tomada de ação e dista do sentimentalismo. Se nos solidarizamos com a condição do outro então podemos agir em prol de uma causa, que acabará sendo maior que um ser humano ou comunidade. Uma causa que é de todos nós.
         E recentemente deu, não no New York Times como cantava Tim Maia, mas, no Vancouver Sun, que empatia pelas outras formas de vida é algo que nós adultos devemos ensinar cotidianamente às crianças. Longe de esperar que elas espontaneamente respeitem e amem os animais, plantas, fenômenos da Natureza ou outros seres humanos, devemos sim, estimulá-las a descobri-los, cativá-las a conhecer suas manifestações peculiares reconhecendo-as como parte de nossa existência e condição humana. Afinal sem qualquer uma das outras formas de vida sairíamos, como temos saído, um pouco mais empobrecidos.
           Felizmente, quando criança, eu me formei em apreço pelos animais. E, por paradoxal que possa parecer, apesar de vê-los servirem-nos de alimento, sempre prevaleceu em mim a lição de meus pais: um animal deve ser respeitado, cuidado, zelado. Por isso compaixão tem, para mim, a beleza das penas nacaradas. E por isso faz todo sentido, para mim, que ensinemos, e logo, nossas crianças a respeitarem outros seres, especialmente os humanos, que andam tão precisados de o serem.
         E um ótimo dia da Criança para todos nós!

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Onde uma crença?

       -  Sua religião?
      Há anos que lhe fazem esta pergunta e Ela emudece. Falta-lhe o que dizer como faltam aromas ao café amanhecido. Responde com volteios e meias palavras que caem da boca. Em casa, no clarão do dia ou em horas madrugueiras, acende suas velas, fia-se na existência de um ser superior ao qual, desde priscas eras, servimos de ventríloquos todos nós. Mirando a espada de São Jorge, exorciza vodus, banha-se em sal grosso, reza o padre-nosso, medita qual zen-budista, respira à maneira iogue e adormece o sono justo dos pecadores.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Da vez primeira em que me reconheci

        Sozinha em casa, meu corpo era uma ferida aberta. Eu costumava fazer diligências e buscar possíveis segredos de família que poderiam me ser escondidos. Afinal, eu supunha, toda família tem cavernas recobertas de teias obscuras. Depois fiquei sabendo que uma família pode ser uma fruta podre, mas sempre é bonita de algum modo. Nutria um sentimento que encontraria um espaço ou coisa inominável, desconhecida. Inexplicavelmente, meu nariz sangrava. Quando senti o líquido quente molhando a face, invadindo a boca e entalando a garganta; eu não sabia. Corri para o espelho, raro na casa. Jamais esqueci o gosto morno da solidão e da cor decomposta pela água. E eu ria um riso bobo e certeiro, pusilânime, avassalador, triste. Eu era aquela imagem. Completamente entregue a mim mesma e achando graça de existir tão independentemente dos outros. Isso já faz muito tempo e esta foi a primeira vez que me lembro de ter pensado o inexistente. Enquanto ria, pronunciava meu nome e isso me fazia mais cócegas e revigorava. Queria parar o riso e me reconhecer naquela centelha espirrada, soprada, pulsante, mutante, correndo, vermelha. Mas não deu.

domingo, 11 de outubro de 2009

Almoço de domingo

         Para Ela domingo sempre foi nostálgico. Para Ele nada era necessário e tudo desprezível: o riso, o choro, o luxo, o gozo, o perfume, o batom, as folgas. Só andanças solitárias, costumeiramente feitas por carreiros e por dentro de sangas saltando por entre pedras e poças d´água, ouvir causos de bêbados, fazer briques de bois e longas conversas com bugres enquanto amarravam cestos, mascavam fumo, tragavam cachaça do alambique e cuspiam no chão, enchiam-lhe a existência.
          Naquele domingo, Ela preparou a comida e com deleite Ele se fartou. Para entorpecer o dia, e sem outro motivo, e sem mais motivo, o homem buscou vinho de seu porão. Bebeu, avermelhou. Depois do vinho, pegou o machado e encarou a árvore imponente, antiga, ali na borda da bica d´água e disse:
         - Vou deitá-la ao chão.
         - Mas por que homem de Deus? Estremeceu a mulher.
         Ele não disse palavra. Ela chorou até, disfarçou, fingiu beber água. Mas o que não se pronuncia é sempre maior. A duros golpes o homem abriu uma fenda na terra e logo depois na raiz grossa. Exauriu-se. O gume afiado era em si próprio que cortava. Exauriram-se todos. A árvore resistiu lacrimejando resina ocre avermelhada. Nos três a esfoladura. A causa pode ser diferente, mas a dor é igual; ou a dor é diferente e a causa igual.
         Ele guardou o machado no porão e deitou-se sob a árvore. Ela se penteou e saiu para passear.
          Nunca mais falaram no assunto.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Cana-de-açúcar e eu

          A cana-de-açúcar tinha um não sei o que de mistério aos meus olhos infantis. Recolhíamos e replantávamos suas mudas em vez de suas sementes. Suas folhas cortantes protegiam colmos doces. Entre um colmo e outro havia um nó, rígido e pouco palatável. Depois de mascada ou espremida no engenho resultava em bagaço, dono de uma textura que não parecia estar contida na cana antes rija por cheia de sumo. O bagaço podia alimentar o gado ou servir de cama e cobertor para o terreno berço da própria cana.
          Acho que a vida da cana-de-açúcar fez morada em mim. Minhas vontades são folhas ásperas e perturbadoramente cortantes. Tenho felicidades tão curtas quanto um colmo. Entre uma felicidade e outra sou nó que não desata. Em estado de bagaço ainda absorvo mil sentimentos alheios. Pereço. Sirvo de alimento a mim mesma e estarei doce no próximo inverno.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O passaporte universal

       Eu comecei a ir à escola antes e depois do tempo. Eu fui para escola fora do tempo. Até hoje ir à escola é para mim algo sem idade. Tenho sempre as mesmas ganas de aprender, perco o sono ideando o que vai acontecer na aula do dia seguinte e conferindo obsessivamente as horas para não me atrasar. Escola e eu temos uma relação que foge ao tempo convencionado.
      Quando comecei ir à escola, meus irmãos fizeram influência em mim. Eu sonhava crescer rápido para ter a famigerada idade de ser admitida à escola, de ser um grande que iria à escola.
        Houve um dia em que minha mãe se convenceu de que não, eu não caberia mais em mim sem o tempo escolar. Fosse qual fosse a estação.
        Mesmo tendo começado a ir à escola com o pretexto de acompanhar uma de minhas irmãs mais velhas, e, lá, recebendo o intrigante rótulo de aluna “encostada” por não ter idade para ser matriculada regularmente, encarei tal status como mérito meu. Jamais me permitia ficar à toa e preenchia páginas e páginas de exercícios de treino, tão mecânicos quanto adoráveis, com força o bastante para o peso da mão ser notado da primeira à última página do caderno quadriculado.
        Para chegar à escola, atravessávamos campos e plantações. Andávamos um caminho montanhoso e interminável para meus poucos anos e forças. Quando eu era vencida pelo cansaço, minha irmã prometia carregar-me nas costas tão logo chegássemos em cima do próximo morro. Tropegamente, eu seguia. No topo de outro morro conquistado eu queria mais era descê-lo correndo. O vento em mim e eu ao vento. Então ela prometia carregar-me no Morro do Modesto. Mas este era tão perto de nosso destino, e minhas ânsias já eram tão aumentadas com a proximidade da escola, que eu terminava dispensando a oferta. Outras tantas vezes ela me ajudaria em morros que eu não saberia nomear.
        Ao sol escaldante, sob chuvas torrenciais, pisando o barro vermelho ou estalando geada, eu ia à escola como quem ganhou o passaporte universal.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Um grão

Era um longo caminho entre a Semente e a tulha, entre a tulha e o prato.

Primeiro era arar a terra, o que, naquele tempo, fazia-se com arado puxado pelo Boi e conduzido pelo Homem. Depois o Homem e a Mulher plantavam o Grão. Esperavam longo tempo entre brotar a semente, crescerem as folhas, verem surgir um pé de milho com a espiga, o pendão. Quando era palha seca o milho podia ser colhido sob um sol pálido no inverno geado.

Depois era a colheita. E requeria que o Homem e a Mulher separassem pendões e espigas, reunindo-as no monte. Daí elas seriam recolhidas ao cesto pelo Homem, a Mulher e a Criança. Do cesto eram lançadas à carroça e, finalmente, levadas ao paiol. No paiol as espigas eram classificadas, destinando o melhor Grão para ser Semente no próximo plantio e para a alimentação. O restolho preenchia o Animal.

Para debulhar o milho, o Homem, a Mulher e a Criança usavam parte de suas horas noturnas, após àquelas dispensadas ao campo. Debulhado o milho, os grãos seguiam para a tulha e, ensacados, podiam ir ao moinho, suportado pelo Homem ou pelo Animal.

De volta à Casa o milho seria recebido por olhos gulosos, bocas cheias de apetites, corpos extenuados. Seria cozido pela Mulher em fogo brando e caldeirão de ferro. Retirado do fogo, esfriaria tanto quanto a paciência da ânsia resistisse. Então seria talhado a barbante e repousaria na boca do prato, na fome do Homem, da Mulher e da Criança.

Entre o bagaço  no campo, entre os vãos da tulha, entre as pedras do moinho, ficavam restos do Milho. Espigas perdidas, Grãos abandonados, Farinha cobiçada, Pó fugidio, que alimentavam o Homem, a Mulher e a Criança.

Assim era no Tempo do Antigamente.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Porque a vida é um vão!

entre o pingo e a gota,
entre uma letra e outra,
entre nota e sinfonia,
entre texto e melodia,
entre o fio e a meada,
entre a porta e a entrada,
entre o cão e sua pluma,
entre linha, ponto, agulha,
entre o pó e a poeira,
entre o sangue e a veia,
entre o parto e o umbigo,
entre a dor e o alívio,
entre sonho e pesadelo,
entre a pele e o pêlo,
entre unha e cutícula,
entre irmão, parente e filho,
entre línguas, lábios, dentes,
entre um sexo e outro,
entre desejo e vontade,
entre fruta e caroço,
entre incisivos e caninos,
entre ovo e formiga,
entre o grão e a espiga,
entre a tulha e o moinho,
há um vão.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Estações e sentimentos

É verão e os lagartos bebem ovos depois do banho de sol. Estou imóvel. Derreto. Dissolvo imobilidade e frenesi no intervalo de um bote.

É outono e em terras canadenses as árvores têm mil cores. Posso repaginar meus anos de escola rural e esquecer a maniqueísta professorinha inconformada com minhas folhas que não eram verdes e minhas flores azuis.

É inverno e eu nunca gostei de chupar bala. Gosto do gosto ácido. Diferentemente dos ursos que após longa hibernação purgam-se comendo folhagem amarga, eu já tenho em mim mil folhas azedas que me bastam para tantas quantas forem minhas hibernações.

É primavera. Sou promessa, vida e morte em uma única flor de cerejeira.

Começar um blog

Meu post de estréia!
Cá estou correndo o risco de tentar uma tarefa totalmente nova para mim! Estou curiosíssima!?! Por ora quero dizer que este blog materializou-se graças a alguns desejos antigos, aqui traduzidos nesta “Lista de Coisas que eu Faria":
Eu montaria um blog.

Eu seria escritora.
Eu seria magra e comeria sobremesa.
Eu faria exercício, mas só aqueles que gosto. Hum? (mesmo nas aulas de yoga, única atividade física a qual já aderi).
Eu teria um filho.
Eu queria me apaixonar várias vezes ao dia.
Eu visitaria a África.
Eu iria ao museu diariamente e estudaria arte a ponto de poder falar disso com propriedade.

Eu não mais me boicotaria.
Eu não mais me sentiria estranha quando estou ao vivo com as pessoas que amo ou não.
Eu seria fotógrafa do acaso.
Eu não mataria aranhas se elas se conformassem em viver do lado de fora de casa.
Eu alimentaria formigas eternamente.