segunda-feira, 30 de novembro de 2009

No ventre

No ventre a música, feição entre dois nós.
No ventre a raiz, bojo do passado.
No ventre a palavra, escandalizando intimidades.
No ventre o fio a esculpir o futuro.
No ventre o desejo a sonhar o porvir.
No ventre a vontade, desenhando o presente.
No ventre a víscera, remoendo o infinito.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ermos

Por minha alma ser esse ermo,
Eu aprecio jarras e boiões antigos que se tem em casa para ali estarem, vazios.
Eu sou capturada pela alternância de azul turquesa e brancos não preenchidos nas peças de faiança.
Eu fotografo ninhos vazios.
Eu leio cartas antigas.
Eu lembro das estampas e tecidos que minha  mãe usava quando grávida da minha irmã.
Eu vejo álbuns amarelados.
Eu anoto fragmentos.
Eu velo a esponja vegetal toda cheia de vazios.
Eu procuro, na cidade vazia, pelo simples hábito de procurar.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Ao cabeleireiro

         No salão chinês tive meus cabelos aparados ao som de uma música francesa, enquanto tentávamos nos entender, a cabeleireira vietnamita e eu, ambas falando uma língua tomada de empréstimo. Eu acho gozado que toda a vez que vou lá ela põe aquela música francesa pra tocar. Acho que para criar um clima. Eu fico tentando adivinhar o que ela tem por ideal de beleza - talvez querendo remeter as clientes à aura do glamour cosmopolita europeu.      
         Enquanto divago, ela começa os procedimentos em meu cabelo. Meu cabelo, aliás, é muito simples. Não tem tintura, é liso como um cão molhado e obedece  múltiplos comandos. Mas mesmo assim ela dispensa-lhe mil tratamentos.
         Essa cabeleireira tem um padrão frenético de cortar cabelos. Não há exatamente uma lógica, um alinhamento, uma sequência ordenada de ações, aquela coisa de prender a parte superior com grampos e ir cortando de baixo para cima. Nada disso. É uma dança aleatória e mortal contra os fios. Ela tanto me penteia, como joga ares quentes tentando secar o cabelo, como  desfia, corta, mede, compara, ajusta  e apara.
         De minha parte, fico entre expectante e  desconfiada querendo saber como tudo vai terminar. E ela continua. Vendo que secou demais, borrifa águas e aromas novamente e repete o frenesi de volteios tentando domar os fios.
         Então chega a parte mais esperada por mim, quando ela, repentina e compulsivamente, começa a trocar de tesouras. Afinal para cada fio há uma lâmina e uma inclinação que melhor se adéquam. E são tesouras pontiagudas, arredondadas, longas, pequeninas e finalmente aquela que é misto de tesoura e pente. Teleguiadas, elas escolhem e picotam meu cabelo em todas as suas direituras.
        Entremeio a tantos procedimentos a cabeleireira arrisca me perguntar algo e me alcança os espelhos. Eu digo qualquer coisa, porque mesmo não entendi o que ela falou, tampouco enxergo sem meus óculos. Entregue à sorte, deixo-me estar. Tão bom não ter em que pensar.
        Eu tenho um amor simples pelo ato de cortar cabelo, como tenho um desespero. Eu sempre tive. Para mim é cada vez uma ação inaugural, uma grande expectativa, um evento do qual não sairei ilesa. É como na vida, por mais que se queira, nem sempre dá pra prever o corte final.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Esboços de duas figuras por aí afora (II)

         Dia desses, para Ele, e bastante para si mesma, Ela encorajou-se com a força dos adornos de todas as épocas, saiu à rua e deixou-se retratar por estranhos. Ele não estava. No romper da madrugada, Ele quis chegar. Ela correu para aprisionar as palavras que, deixando-se cair da boca, fugiam dos lugares onde tinham sido cuidadosamente dependuradas, como piercing à língua. Mas nessas horas elas eram lépidas por demasiado. O engraçado é que às vezes Ela tentava linimentos de palavras contra o corpo e isto lhe provocava algum tipo de prazer carnal, uma espécie de comoção áspera com propriedades curativas. Descobriram que Ela tinha vários planos e desejos eróticos ocultos, que a educação de uma mulher séria nunca deixariam revelar. Embora que tem coisa que não dá pra guardar pra sempre. Causava-lhe estranheza pensar que Ele não sentisse saudades. Vivia perdido em volteios, com um olho no peixe e outro no gato. Mas eram muitas as voltas que ambos davam antes de sorrir com a palavra mal engolida no canto da boca. Eles iam por aí.

sábado, 21 de novembro de 2009

No entre lance

         Ainda ontem, de entre lance, Ela foi vista enquanto andava catando folhas e pétalas sedosas com as quais enchia os bolsos. Aparando o cabelo, um xale pintado a flores do qual brotava longa franja. Ela desfilava por aí. Depois as pétalas caíram e estava desnuda. Pensou: minha alma se despiu, tal qual um sapo que pula pro brejo e deixa a pedra mais endurecida pela fuga daquela existência. O que fazia nestas horas em que precisava tanto dos outros era ilusão. Fotografava ninhos vazios, que a estação estava propicia. Ia ao bugre, que era pra tudo, e recebia compostos saídos de boiões antigos para se tomar à gota pouca. Ele não lhe prometia nada, mas pedia que anotasse a vida e passada a quarentena voltasse com tudo escrito, na cabeça os sonhos sonhados. Mandavam que fosse feliz, coisa que Ela, com mais e menos força, tentava levar à risca. Ela ia por aí.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Good for nothing

Lista de coleções que eu poderia ter:
Papéis com texturas e gramaturas diferentes.
Fotografias artísticas.
Retalhos de tecidos estampados.
Caixinhas.
Bolsos.
Bolsas feitas à mão.
Botões.
Folhas.
Linhas coloridas.
Poemas e excertos de livros.
Fragmentos da natureza, como galhinhos e tronquinhos.
Então, como num conto de Ítalo Calvino, eu os proclamaria: Good for nothing!
Essas são as coisas nas quais sou formada.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Em país alienígena

      Em país alienígena vejo habitantes que:
Vendem e vestem botas de borracha para  quaisquer ocasiões:  ao passeio ou aos trabalhos urbanos. Essas botinas nós as usávamos em criança estritamente para as lides no campo.
Não temem a chuva, nem quando ela se mistura a flocos de gelo como ocorreu hoje. Saem paramentados com botinas, jaquetas, gorros, luvas e o guarda-chuva. Quando não, pedalando bicicleta, com mais o cachorro e os miúdos a tiracolo.
Consideram 3ºC uma temperatura agradabilíssima.
Aplicam o conceito de belo às folhas vermelhas e gastam horas juntando-as, pois nesta estação elas tomam conta da cidade.
Bebem café morno o dia inteiro, pretendendo que isso os aqueça.
Têm suas línguas para chamarem maternas.
Transitam entre línguas maternas e a oficial.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Confissões

Eu aponto lápis para gozar o momento de.
Eu bebo café sem açúcar porque quero até a última gota do aroma.
Eu leio dicionários diariamente por gosto e precisão.
Eu carrego palavra como quem carrega um filho.
Eu fico imóvel para não perturbar a transparência fugaz das lagartixas.
Eu remeto bilhetes e cartas de amor que formulo em meus olhos antes de dormir.
Eu choro longe dos espelhos.
Eu adormeço com óculos esperando ver melhor o que sonho.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O desejo de Madalena

Madalena tinha lá suas frases de efeito:
Conferindo as próprias axilas no fim do dia, espantava-se: que cheiro é esse? Não sou gambá.
Se lhe cortavam o cabelo demasiadamente, resmungava: estou tosada! Não sou uma ovelha!
Acometida por insônia intermitente, ralhava consigo mesma: durma, não és morcego.
Quando lhe davam serviços superiores as suas forças, indignava-se: não sou burro de carga.
Em dias de insatisfação própria de mulher, chiava: este cabelo acha o que? Não sou galinha d’angola.
E se seu homem não queria lhe chupar as partes, aborrecia-se: não sou uma porca, sou limpinha.
Para o caso de ele se achegar nela afoitamente, advertia: não sou coelho.
Se ele não lhe pegasse nos peitos como devia, atirava: não sou uma vaca.
Madalena queria se convencer de que era mulher.

domingo, 15 de novembro de 2009

Qual sede

         Há dias em que Ela acorda sentindo muita sede. Para matar a desse tipo só bebendo mesmo a água da nascente, que vem da pedra e se traduz em olho d’água. Mas onde esse lugar? Em dias assim Ela se vê estranhamente diferente dos outros, tanto que até quereria encontrar uns seus iguais para poder dizer: reconheço-me. Paradoxal, muito diariamente sofre e abomina tantos sentimentos que não sabe nomear. Ela queria ter algo para chamar de seu. É quando o excesso de chão a põe no abismo, como precisar pisar e faltar em que. Ela nutre um cisco de esperança por acreditar que tem coisa que nem se pronuncia, só olha, e de tanto olhar chega o tempo que tudo olha pra gente. E daí já se sabe aquilo que parecia difícil apreender.
          Qual vida, qual sede, assim é Ela.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Porque, no princípio, já era o verbo

         O homem contemporâneo parece-me vítima e algoz do vão. Carece ele de algum verbo novo que o descreva?
         Entre páginas e páginas on line, navega. Entre grãos e grãos de poesia, garimpa. Entre livros e livros por ler, cata. Entre notícias de um mundo alargado, esgravata. Antes de bicar o que vai lhe nutrir, cisca alimentos de origens remotas vendidos na quitanda da esquina. Quer resumir? Twitta. Palavra nova? Nada, emprestada. Twitter em inglês pode, dentre outras coisas, significar o breve som emitido por alguns  pássaros. Então twitter é isso: um canto à brevidade, um espasmo da palavra.
        E como fazer caber um devaneio em 140 caracteres?
       Em matéria de desejo estamos de novo e sempre às voltas com o mesmo, desde as priscas eras da civilização. Mais do que palavras novas, precisamos de ideias inaugurais, ainda que as perguntas sejam antigas.
       E eu lhes deixo com uma, formulada pelo moleiro Menocchio e relatada por Carlo Ginzburg, “como ungir o espírito?”

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Germinal

        Às vezes Ela engolia tudo. Há quem diga que a gula é o avesso da fome, mas para Ela, pode que seja muita fome recolhida de tudo que existe ou pudesse existir. Quando conseguia, Ela anotava algumas coisas que depois eram transformadas a qualquer hora que estivessem prontas para ser. O duelo entre aquelas muitas versões de escritos e de si mesma, havia vezes, rasgavam-lhe as entranhas. Uma prima, vinda de longe, mandou que Ela largasse essa muleta de ser mulher frágil , fraca, à maneira de uma galinha enxotada do ninho. Mas, Ela moía de si para si, galinha enxotada do ninho também se empina e para lá acaba voltando, bico em riste, patas sóbrias a pisar o chão, asas abertas por o bicho pretendendo ser maior do que é, um tipo de fúria enfim. A galinha que volta pro ninho pra terminar o que começou é a moral da criação da mulher forte, absoluta síntese ou rejuntamento de ossos, cacos, cascas. É o próprio ovo germinal.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Flores de Plástico

      Eu repudio flores made in china porque eu não gosto de imitação. Quero o espinho sangrando a carne. Eu acho uma flor imersa em um copo d´água tão mais bonita. A calêndula, por exemplo, é filha do mistério. Ela exala perfume que remete ao campo, pode se disfarçar de flor vulgar aos olhos incautos e ademais atribuem-lhe poderes cicatrizantes. Minha alma anda tão esgarçada, moléstia deste meu incompreensível sentimento do mundo. Em dias assim sou meu próprio nocaute, oponente, juiz, rede, tatame. Mas, coragem, já é 4ª feira e eu tomo chá de pétalas e flores.

Mudar


Primeiros resultados de três dias em nova residência:
Novo molho de chaves e mais senhas e números secretos para decorar.
Inúmeras plantas sedentas, como eu, para aguar.
Cômodos e armários para ordenar.
Uma banheira branca e cristais de banho só pra mim.
Novos barulhos e mistérios de uma casa inteira por descobrir.
Um resfriado intempestivo, daqueles que insistem em nos lembrar de todos os que amamos, pois só eles nos salvariam da certeza de que não encontraremos força para juntar o que sobrou do corpo.
Sono tranquilo e sem sobressaltos, pois sei que os ratos ficaram todos no porão abandonado.
Alarme da cozinha que não cessa de disparar, donde concluo que sou mesmo um perigo na cozinha. Na casa antiga, por falta de tão engenhoso instrumento que veio em socorro das mulheres modernas, a fumaça invadia todos os cômodos e me tomava de assalto em meio à página ou a uma cidade qualquer de um conto russo, antes que eu pudesse lembrar que estava a cozinhar algo para o pequeno almoço.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Apontamentos para uma biografia

           
 Jovem,  eu visitei cidades e aprendi a percorrê-las e percorrendo-as pude amar suas geografias.
           Adolescente,  deixei meus pais para  morar na cidade e demorei pra entender que um barulho de carro era um barulho de carro e não o anúncio de uma visita inesperada em meio às lides da vida no campo.
             Mas era infância quando:
            Tive minha confiança solapada pela primeira vez foi porque, a pretexto de me mostrar algo, meu irmão pediu que eu abrisse muito os olhos. Assim o fiz  e ele os encheu com quirera fresca, causando em mim imensa dor. A dor de  um amor traído.
            Eu me machucava e ouvia sempre a mesma frase: “Mas o que é que você foi fazer?” E isso fez influência em meu modo de entender  causa e efeito.
            Ganhei  uma irmã mais nova e eu  tinha certeza que ela brincava com minha coleção de latinhas Royal mesmo estando ainda na barriga de minha mãe.
            Eu  tinha só um vestido,  amarelo serpenteado de bolinha brancas. Minha mãe o lavava com zelo. Mas um dia ela o  estendeu  no varal e, com zelo,  a vaca o comeu.
            Eu ganhei meus primeiros sapatinhos vermelhos e um deles foi engolido pelo ralo do tanque logo na primeira lavada. A torrente de água fugidia  deixou-me só, como só, restou um sapatinho vermelho.

Das pequenas mortes


          Havia uma lei não escrita, mas imperialmente conhecida e aceita, que mulher pra poder casar havia que saber puxar orações, rezar o terço inteirinho, coser, bordar e engomar todo o enxoval, com tal zelo que os dotes pudessem ser mostradas a toda gente. Havia que saber olhar a lua e o tempo certo de atirar sementes à terra. Havia que saber de onde soprava o minuano e quando não era pra podar galho. Tinha que saber de guardar rama e grãos pro tempo de replantar. Também havia que ser prendada, e de tudo um pouco saber fazer. Era costume que da mãe se herdasse uma máquina de costura, fosse manual, de pedal ou ainda de pedal elétrico, mas isso foi bem mais tarde.
        No tempo em que Ela ganhou a primeira Boneca das mãos de sua Madrinha, já sabia que mulher tem uma coisa assim: sofre, angustia, chora, joga tudo fora, arruma o cabelo, passa um batom pink vermelho e sai para passear. E à medida que sai a cor do beiço, mais tarde corrói por dentro, nauseia.
         Aquela sua Madrinha trabalhava fora, era cheia de opiniões, enfrentava impavidamente o marido e, quando decidiram ir morar no centro do povoado, inaugurou sua chegada arremessando a frigideira pela janela do rancho em um ataque de gana pelos disparates do cabra. Tentava buscar saídas. Era, enfim, uma Madrinha e por isso Ela nunca se importou. Gostava daquela mulher em tudo o que pudesse ter de atípico. E a mesma comoção e sentimento que nutria por outros seres miúdos ou indefesos, a mesma vereda que enrubescia a alma quando alguém era humilhado, Ela experimentava por sua Madrinha.
        Ela queria se salvar como boneca precisa ser salva do esquecimento, das desilusões e vontades incautas. Talvez por isso Ela, quando foi morar à cidade grande, levou consigo a Boneca mesmo temendo que ao arrancá-la do lugar onde deram-se a conhecer fosse algo parecido com tirar de vez a própria alma do quintal onde nascera.
       Usava um tom assim. É provável que fosse verde com pequenas nuances circulares em branco, o cabelo esvoaçante mas ordenado, do modo como Ela quisera que lhe tivessem arrumado quando criança. Passados tantos anos e aquela Boneca agora ali, ora impunemente sentada na cabeceira, ora deitada ao chão, ora atirada sobre a cama, pondo uma e mil recordações, avassalando a mente. Quem a visse assim, de olhos tão abertos, com cílios bem definidos e a menina dos olhos a ditar o contorno, jamais poderia supor que fosse simplesmente uma, mas que para Ela.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Demudar

Mudar é sempre de
Uma urgência e
Decorrência de algum desejo
Assim perdido e
Resgatado pra ser vivido.
Eu sempre acho que algo
Ubíquo, como um desejo, devia
Ser bem entendido.
Em sendo assim, evitaríamos
Mudar, mudando sem ter motivo.
Prefiro é ir
Reinventando algum lugar desconhecido.
E que
Mistério,
Ultimamente, mudar tem sido de um
Devaneio tão visceral que até parece
Obsessivo.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Esboços de duas figuras por aí afora

           E por falar em não perder o juízo, Ele matutava coisas estranhas, parece que sonhava a realidade. Descobriram que Ela tinha completa aversão por naftalina e outros aromas assemelhados.
          Ele jamais se separara de seu isqueiro porque abominava caixas de fósforo, ou qualquer coisa que remetesse ao cheiro, aos restos. Quando, acidentalmente, encontrava uma fagulha ou palito, corria preciso, desinfetar as mãos com muita água corrente saída da bica, depois com álcool e por vezes repetia uma vez mais todo o processo.
           Cochichavam que Ela, esporadicamente, arrumava o velho baú. Tudo que trouxera quando chegara por aquelas cercanias. E, cautelosamente ordenava retalhos, fiapos e roupas antigas, estabelecendo uma classificação qualquer que hora era a cor, hora o equilíbrio do todo que determina o fim.
          Quanto a Ele, palpitavam que gostava de repetir adágios e com eles inventar histórias palavreadas de imagens fortes e nem sempre clarividentes.
           Impressionavam-se.
           Os que a conheciam também supunham a fascinação dela por galinhas, que em geral não costuma ser bicho de estimação. Só Ela distinguia  a meiguice das penas sobrepostas: nacaradas, avermelhadas, ocres, carijós, alvas, negras e quando achava uma ou outra perdida, podia dizer a qual parte do corpo pertencia, só pelo cheiro da dor.
          Nunca souberam se Ele tinha ou não dotes culinários, tampouco confirmaram seu pactos com o tinhoso, embora de sua chaminé sempre escorresse para o céu um miúdo fio de fumaça preguiçosa e sua aura causasse estranheza a olhares apressados.
         Ela gostava de apertar úbere de vaca e pronunciar a palavra urubu, assim u-ru-bu, pausada, laconicamente, e pensava como aquele Deus pudesse ter criado olho de gente, que é assim tão oblíquo, e um bicho que se prestasse a comer tudo o que os mais velhos nomeavam carniça.
        De uma feita, Ele queria construir um rancho no sopé da montanha, onde esta se dobrava e uns ariticum amarelavam em cada quaresma. Dizem que Ele chorava copiosamente quando. Viam-na chorar sim, mas de tristeza mesmo, solidão ou raiva. Coisas que Ele parecia não sentir.
           Houve um dia, Ele chegou da vila trazendo-lhe presentes e uma fabulosa máquina que diziam poder cantar bonitezas, mas uma parte dos presentes deixou no caminho, que a mula não venceu o eito. Ela nunca lamentou. De certo que não só a mula fosse dada à resignação.
            Ela ignorava a falta de bons modos com que Ele costumava portar-se quando estavam a sós, em andanças, mas ninguém supunha, posto que Ele era bem esperado em cada alambique da cercania.
            Vingou uma vez a lorota de que Ele se entregou à bebida, cansado que estava de macerar, picar, mascar e cuspir o rolo do fumo forte. Meteu medo em toda gente, seu braço e o tamanho da sua bainha. Um solteirão, que morava no borda do poente, teria avistado-o sacudindo os pelegos depois de levar a si a ao estimado asno por barrancos indesejados.
           Ela crescia, dissimulada e comedida, enfurnada em moldar quimeras.   
            Ele deixou de ser visto, uns diziam que havia caído em sono profundo e escondia-se dentro da própria casa, abandonando a cama só até alcançar o cabo do penico e umas miudezas quaisquer por alimento.
           As vizinhas, destilando inveja mordaz, costuravam horas e inventavam-lhe destinos obscuros e fantásticos acreditando que Ele fugira, cansado da solidão a dois e dos poucos dotes dos quais Ela se servia para agraciá-lo.
            Ela nunca gostou de ver bicho sofrer, porque era nela que doía. A dor de uma paulada certeira representava-lhe mais ameaça, mesmo que fosse para se defender de cobra venenosa, lagarto, ou impingir vontade à mula quando arar a terra ou conduzi-los ao bugre era questão. Nunca gostou que ralhassem com Ela, preferia calar ou falar muito.
            Gostavam era de ver cantar passarinho, mas com silenciosos berros Ela queria que Ele acudisse o destino.
            O silêncio era o arrimo de ambos.
            E Ele e Ela de repente achavam-se juntos sem que nem um, nem outro, tivesse que dizer: senta comigo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A vida não chega

        Fernando Pessoa fingiu seus heterônimos para fazer caber em algum lugar aquilo que não lhe cabia mais em si.
       Clarice Lispector deu voz a seus personagens femininos para fazer todas as perguntas impossíveis de serem respondidas, mas indispensáveis para se viver uma vida.
       Luigi Pirandelo em “Um, Nenhum, Cem Mil” nos diz do quão intrigante são as percepções que os outros fazem de nós, como o são também as impressões e certezas que temos a nosso respeito, para por fim notar que nenhuma delas parece coincidir exatamente com o que somos.
       Julio Cortazar inventou seus “Cronópios e Famas” para fazer a alegoria dos tipos humanos e suas atitudes diante da vida.
       Ítalo Calvino desenhou “ As Cidades Invisíveis” pelas quais podemos viajar e sentir melhor esse lugar onde habitamos.
       Elias Canetti iluminou e absolveu sua biografia criando “A língua absolvida” e “Uma luz no meu ouvido”.
       Cada um escreve sobre o modo como olha pelo vão da vida. E a lista de exemplos termina infinita porque, como afirmou Fernando Pessoa, “A literatura é a melhor prova de que a vida não chega.”

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Aquele Pai

       Todo dia era assim. Acordava sem nenhuma cerimônia, dava passos largos que ressoavam pela casa de madeira, descia ao porão e fiava seu repertório de barulhos para avisar à dúzia de filhos que era hora de tomar o rumo do eito.
        Acendia o fogo no velho fogão de tijolos sem esforço de encaminhar a fumaça para a chaminé e logo cada aposento seria invadido pela fumaça ardida e pelos rompantes de urgência daquele Pai. Tinha vezes que o barulho da pesada chaleira de ferro triscando o fogão ou o da colher com açúcar girada dentro do bule de café enchiam a manhã com suas estridências.
       Quando lhe sobrava apetite, Ele enchia a chapa do fogão de pinhões e rompendo-lhes a casca com sucessivas batidas da madeira contra o metal convidava os filhos a estrear o novo dia. Se ainda assim algum rebento ousasse se prolongar na preguiça matinal, ele usaria sua força derradeira e com um grito ou dois, não mais, teria todos ao seu redor tomando o café e o rumo das previsíveis e alternáveis lides do campo.
       Todos a postos, Ele voltaria  pro leito e    remoeria a própria obscuridade. Não raro, depois de semanas embrenhado na penumbra do quarto para curar dores que não se faziam entender, Ele surgia em pé, no meio de uma hora. Munindo-se de pás, machado e picareta rumaria para o serviço mais bruto: abrir valetas, limpar o poço d’água, tirar um tronco fincado a terra e ali se deixaria ficar até cobrir-se de suor, terra, barro ou pó.
       Não parecia gostar das pequenas tarefas que lhe impunha a mulher, como amarrar vassoura e fazer cestos, mas quando esses utensílios estivem no oco ele os reporia com ares de desagrado e inaptidão.
       No domingo a bronca era outra: dar algum sentimento de fé aos filhos. Repetia a ladainha dos dias da semana acrescendo a urgência de terminarem o serviço de servir comida aos bichos, cedo, para depois irem à igreja, religiosamente, todo o santo domingo. Ele mesmo ia a Igreja quando em ocasião de um filho receber um sacramento.  
      De comprar e vender miúdos e de inventar caminhos Ele gostava e um ou outro desses ensinamentos cada filho tomou para si como pode.
      E hoje Aquele Pai poderia se reconhecer na dúzia de trilhas escolhida por seus tão distintos rebentos.