segunda-feira, 22 de março de 2010

Sem ocaso, a infância.

      Das memórias de infância importo palavras que habitam meu cotidiano. Hoje quis falar de algumas delas.
      Nas lides no campo, trilhava-se o milho. Trilhar o milho era separar os grãos do sabugo, da palha e dos pelos. Isso nos envolvia em uma nuvem de pó e em uma avalanche de grãos limpos e de cores vívidas saindo da trilhadeira. Era revigorante ver e mergulhar em tantos grãos frescos juntos. Hoje, parece que além de separar as coisas, como outrora era trilhar o milho, trilhar diz-se de escolher, de inventar um caminho, de percorrer um universo nem sempre facilmente navegável. Tatear um destino enovoado.
      Jogar carreira. Brincadeira simples que meu pai costuma fazer comigo. Depois descobri que esta era em verdade uma competição comigo mesma. Porque papai sempre desistia, às escondidas, logo depois da largada. Mesmo assim eu corria rápido para mostrar-lhe o tanto quanto eu poderia correr. Hoje carreira diz-se das coisas mais sérias, que envolvem formação, currículo e atuação. E faz-se mesmo um tipo qualquer de aposta com a própria sorte. E com as próprias forças.
       Costurar o eito: meu pai gostava dessa ideia de costurar o eito. Ele nos ensinava como era andar por atalhos. Ele nos ensinava como, cada um  capinando a sua parte, resultaria um eito pronto. Ele gostava de ir pelas beiradas, ora iniciando, ora arrematando o eito, dando a deixa pra gente atuar. Era um tipo de teatro. Éramos atores no palco cru da terra. Era uma grande colcha de retalhos feita a enxada.
       Estar a coser. Hoje falar em tecer, em tecido, tem um quê de moderno. Para mim é, uma vez mais, reavivar um tipo de memória originária. Em criança, a ideia de juntar as coisas, de dar forma aquilo que antes era um pano, de ver como as linhas saiam dos carretéis para se cruzarem e unirem no pé da máquina, operavam em mim grande fascinação. E eu gostava de ver o avesso do bordado feito por minha irmã e de ver os fios que restavam da costura. Porque a vida não se faz sem sobras e folgas e alinhavos.
       À corredeira. Estagiei minha infância em poças e valetas que exerciam sobre mim seus convites irrecusáveis a cada chuva. Feita de pequenas avalanches, poças e caminhozinhos ideados ao acaso, a vida segue. Em curso.

quinta-feira, 4 de março de 2010

De amuleto

Desenhado para fortalecer os descrentes.
Disfarçado em pendente, figura, medalha ou peça, atribui ao portador um tipo qualquer de sorte.
Transfigura-se em bicho, planta, palavra ou gente.
Em estados variados, qual manivela ou barco, propulsiona-nos adiante.
Algo que se carrega para fingir vida fácil.
Rememora a vida que nos arrebata.
Protege e arremete feitiços.
Produz experiência.

Eu, viagens cruzadas, meus dedos no destino.
Eu, dedos cruzados, viajo o destino. E você?

quarta-feira, 3 de março de 2010

Como mentir para própria memória

        É quase sempre assim. Eu esqueço. Há poucas coisas das quais eu consiga lembrar facilmente. Eu habilmente esqueço-me.
        A mim são úteis as companhias de pessoas cheias de memórias para dizer-me: “foi assim” e, às vezes, eu então até lembro que foi. Quando não, tenho que acreditar.
        Há histórias que gosto de saber de novo. Especialmente aquelas que dizem respeito a um tempo vago e difuso como é o da infância. Esse que cabe no “era uma vez”. Esse que cabe no “naquele tempo”. Esse que cabe no “quando vocês eram crianças”. E ficamos, meus múltiplos irmãos e eu, cabendo nesse lapso indeterminado.
        Quando auxiliada por minha mãe, eu avisto minhas memórias.
        Descobri outro dia  que o primeiro rancho que me formou ficava num eito de terra chamado “Da Saudade” e fiquei gostando. Aquilo é diferente de toda a cidade, porque meus olhos o fazem mais bonito. Do nascente ao poente, e assim se mediam divisas, era mata cortada por carreiros e sangas engolidas pela noite imensa. Se era a luz de uma noite estrelada permitiam-se serões.
        Outras vezes, é um irmão, uma irmã, que compila minhas memórias ausentes.
         Eu, de minha parte, acho que invento quase tudo. É como mentir para própria memória, oca.
         Ocupada em ser formiga, quase nem sei ser cigarra. Talvez um dia eu possa, como li aqui, pronunciar: “Casca oca, a cigarra cantou-se toda”.(Bashô)

terça-feira, 2 de março de 2010

Homenagem

       Li, dias atrás, esse poema que julguei ser perfeito para mim e para aqueles meus iguais no amor aos livros. Bom, hoje eu quis oferecê-lo, como homenagem, ao bibliófilo José Mindlin.

       ODE AMATÓRIA
                       Poema de Alexei Bueno

Meus livros amados,
Como trepadeiras
Sobem, apinhados,
Paredes inteiras.


Alargam seus flancos
Por cômodos, quinas,
E erguem-se em barrancos
Fabricando esquinas.


Lombadas, brochuras
Me olham das estantes,
Marroquins, nervuras,
Discretos, berrantes,


E neles me espiam
Gregos e sumérios,
Almas que extasiam,
Monstros deletérios.


Quinze mil amantes,
Bem embaixo, em cima,
Livro, o agora e o antes,
Palavra sem rima.


Que vida haveria,
Reles, pouca, porca,
Sem tal companhia,
Taça que se emborca.


Fólios, incunábulos,
Línguas e cidades,
Semblantes, vocábulos,
Desastres, vaidades,


Bulas, manuscritos,
Toda a espécie humana
Em grilhões escritos
Numa caravana


Que cruza o deserto
Nosso, soledade,
O longínquo, o perto,
O agora, a saudade,


De mãos dadas, nisto,
Filho, pai e avô,
Juntos Jesus Cristo
E o Doutor Petiot.


Sarabanda estática,
Vertical loucura,
Viagens, numismática,
Budismo, pintura,

E os autores todos,
Vivíssimos, mortos,
Ancestrais rapsodos,
Místicos absortos,


E entre os que pisaram
Nas poentas paragens
Os que em almas aram,
Tipos, personagens,


Todos, todos juntos,
E os florões, e espelhos,
Colofões defuntos,
Frontispícios velhos...


Que teria eu sido
Sem tal ebriedade,
Meu portão fendido
Para a eternidade,
       Para o imenso, a viagem
       Da alegria humana,
       Sem mais dor, voragem
       Que nos unge e irmana?