terça-feira, 5 de agosto de 2014

Uma ideia de palavra

Já viram? A traça quando sai de lugar em que se deixou estar marca um vão. Imprimi aí um vácuo. É quase um decalqueMas não é como casulo de  bicho da seda ou  borboleta, tampouco como casca de cobra, porque devorou.  Se fez  pondo a sucumbir em vez de dar vida.  Não gosto de traça. Essa inútil bobeira. Esse ser ignóbil atodo tempo se fingir  morto.  E se ela está onde nada pode corroer, que lhe importa? Trama um jeito de, em largando ali seu visgo,  fazer remanescer algo de si.  Quanto a mim, que gosto de tantos seres,  gosto da palavra. A palavra, como a vida, também se faz de ocos. E é no oco que eu quero estar. Quero saber o que há de frescor nisso que já não é  mais. Porque aquilo que se abandona, permanece. É como casca de ferida que criança adora arrancar. Já disseram que  criança faz isso é porque  adora seu dodói.  Os adultos também adoramos nossos doer e arrancamos cada casquinha de ferida a seco, para ver de novo o sangue invadir a pele.  Porque somos viscerais. Sem volteios. Queremos saber como se faz para botar vida na crosta seca, para sentir   a dor presente, que já não é a mesma, porque uma dor nunca imita a si.  Por a nu a ferida quase sã é arrancar uma palavra de seu torpor.


domingo, 27 de julho de 2014

Para ler

A qualquer hora do dia, vaga,  leio-lhe e perscruto-lhe. Entre idas e vindas um pensamento toma-me de assalto: de  restos e esboços  também se  faz um personagem de si.  Da junção de quase nada útil se insinua uma obra. Entre distraído e absorto,  chega-se repentinamente a essa dança fugaz. Então,  se houver palco, haverá ato. 
Ler requer várias investidas, à maneira da escrita. E é só de um ventre  vigoroso   que pode nascer a escritura. É   como no ato amoroso: uma ação  não desfaz  a outra, como vacilos e pensamentos inesperados  são bem-vindos.
Ler  não requer só ferramentas e  aparatos racionais: atravessamentos de opiniões, voluptuosidade, ecos, carícias, sussurros longínquos, recuos, tensão viril,  infusões passionais, olhares atônitos, qualquer  luz lúgubre   compõem a cena.  
São sempre plurais as leituras, especialmente quando  passíveis de intervenções  perturbadoras, aprazíveis, avassaladoras.
Se assim for,  quando concluídas, findam? Ou   seus   efeitos reverberativos permanecerão?

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Do amor até a palavra


 Onde meus afetos? Eu os perco no caminho, como aquele  sapatinho vermelho que perdi na infância.  Lavo-me. Banho-me demoradamente e caio em tentação.  Descuido-me. Tento despir-me de qualquer ideia impregnada. Vem uma palavra e atira promessas. Recuo. Ignoro. Finjo não ver. As palavras  também são seres voláteis. Elas se oferecem e me abandonam com a mesma fugacidade com  que  sirvo à luz do dia. 
 Essa fronteira irrisória entre o que sou e o que pretendo ser,  isso ensina-me a palavra. E fico fazendo-me de esquecimentos, de mal-entendidos, de disfarces, porque uma vida não se dá, uma vida se inventa. Uma vida é um arremesso contra a descrença, um quase,  uma punhalada  na covardia.  
 As palavras são viscerais e, estáticas, restam aí juntando  pó, dando nó como correntinhas de ouro  finas demais, embrulha um pouquinho para ver no que dá? Abandone-as, ainda que involuntariamente  e, quando  voltar a si, não mais se distinguirá começo e ocaso...  E será preciso muito tempo para desemaranhar o nó. Porque palavra na garganta é isso: uma distração que sofre. O vil metal, tomado a desleixo.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Poeminha nascido com ares de um pássaro

Quero-lhe  no nada. Quero-lhe tudo.

 Quero seu avesso. Sua verdade inaugural.
Quero-lhe  tantas quantas forem  suas facetas e que, ocasionalmente,  diga-me aquilo que nunca pudestes dar.
Quero-lhe para além do ruído cotidiano.
Quero-lhe   até   não saber precisar  o que a mim ou a ti pertence.
Quero-lhe em  cada lampejo de lucidez e alegria. Quero-lhe assim: na incongruência, como  quero seu inferno e todas as sombras que desenham sua solidão ou espraiam suas nuances.
Quero-lhe,  à medida que o tempo passa, em  cada uma de suas novas acepções.
Quero-lhe no gozo  pouco previsível.
Quero-lhe a um só  tempo inesperado e fronteiriço.
 Quero-lhe  na vastidão do segredo,  na intimidade ignorada, na imprecisão contumaz.
Quero-lhe para quando eu não puder me fazer ouvir e você nada puder nomear.
Quero-lhe em cada vicissitude e  para não sucumbir   ao  enfado.
Quero-lhe para viver idiossincrasias.  
Quero-lhe na ferida exposta e  para quando não se puder   extirpar a dor.
Quero-lhe, com amor,  enfim: palavra!

terça-feira, 22 de abril de 2014

Decalcomania

Ela sempre teve dificuldade de usar o que lhe é dado: das lâminas de  decalcolagem  ganhas na infância,  cujo destino fácil era  virarem enfeites na pia ou  geladeira azul de sua mãe,  às benesses do presente. Por isso amarrava-se ao passado.
Ela abominava  aquelas arranjos artificiais  decalcados  na geladeira amarela da vizinha. Ela  sempre teve decalcomanias em casa, mas e  onde a coragem de usá-las.? O mesmo se dava com as cartelas de adesivos decorativos. E o que dizer do jogo de lençol que ganhou  na década de 90? Lá, erguido na última prateleira do armário, juntando marca amarelada no vinco.   Cadê  coragem de  usar lençol tão  branco?
Hoje, filhos crescidos, netos crescidos, cabelos brancos, um presentinho ou outro guardado ainda na embalagem e um resfriado que não cede.  Família vem no pacote, pensa.  Ovo de páscoa da data passada, ainda embrulhado, rato roeu... Farelo bordado  de  papel reluzente caído do bolso do único terno roto pendurado no armário. Isso. Esse fiozinho de existência. Esta vida comezinha. Essa certeza de  sentimento, fininha, qual  papel laminado de ovo de páscoa.
Nas decalcomanias, lê em  Walter Benjamim, as cores flutuam aladas sobre todas as coisas.

sexta-feira, 11 de abril de 2014

Fins


Todo fim de feira é assim:  xepas de aqui e acolá. É como palco de teatro que, depois de ter cedido lugar ao evento principal,  esvaído de público,  perfaz-se de restos.  Assim seria também a sala de aula ideal? O que sobra quando  saídos alunos e professores?  E que pensamentos  ocupam o coveiro, depois que todos se foram e  o que parece  restar é terra revolvida, um corpo defunto e cimento fresco?  Que  coisas  assolam as gentes que ficam quando alguém se despede?    E todo fim de festa é assim? Restos, sobras, excessos, a fineza derretida em maquiagens já lúgubres, a roupa amarrotada, uma sensação a mais de felicidade acondicionada,  com data e hora de validade. Quanto  durará?

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Assim é (se lhe parece)


Que a gente é o que é,  é uma dessas  impressões que vira e mexe assalta a cabeça da gente. Agora que a gente possa se reconhecer nesses tantos outros que podemos ser e  ignoramos, é o mais contundente.  Devaneios tomam-nos de assalto.
A manicure adolescente, um turno na escola, outro no  salão de beleza, piercing reluzente no nariz, maquilagem à Ammy Winehouse,   barriguinha  ora à mostra  ora mal disfarçada sobre a blusinha amarela choque expondo  dobrinhas de farta  ansiedade  e ilusão,  comenta com a amiga ao lado: “Minha unha nunca mais foi a mesma  desde que arranjei esse emprego aqui”. E assevera: “olho gordo”.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Canteiro de obras


Ideias para um texto e nenhuma   soberana o suficiente. E a  encomenda?  Pra quando é mesmo? – pergunta ao  imaginário editor  de si.  As ferramentas ali, o canteiro de obra aberto, colher de pedreiro, ruído de serras segmentando  treliças e vergalhões, cinto de segurança mantendo-a suspensa na armação de aço, escavadeiras rompendo o solo amalgamado. Onde se pisa quando o chão rui? Onde se acomoda sentimento quando a pergunta não  dá trégua? Esse visgo imaginário sempre foi sua  viga mestra? Ela ali, tentando escrever, o texto aberto. O  líquido verde do nível acumulado em uma das extremidades,  forçando-a a perceber que o  escrito  pendia para um lado.  Confusa,  entre um ruído e outro,  pensa: o aeroporto é só um não-lugar. As reformas atestam isso. Tudo imagem da infância. Não é licito usar imagem da infância? E se a família não gostar? E se nem parecer que foi mesmo? Pega  formão,  plaina, picão,   serrinha  a quatro mãos, pois nunca se sabe o que demandará um texto. Às vezes, o que ele exige são armas de fogo, outras... Um texto é isso. Matéria em estado bruto. Tal qual sentimento inominado.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Arqueologia urbana

         Ele sonhava em fazer de seus achados um roteiro. Tal qual um mapa com o qual se pudesse operar cidades. Uma vez, achou, em bairro que pouco distava do centro, um ninho de passarinho  avassalado de intempérie. Deu nisso. Pôs-se a esquadrinhar não só pássaro fêmea  de  olhar perscrutador sob o ninho arremetido ao chão, mas os hábitos  vizinhos. Onde eles? 
          Fios coloridos de outrora engrenagens cibernéticas, parte do que fora pompom de roupa de criança, cabelos e pelos de animais variados, díspares galhinhos, um anel plástico  que selara a cachaça mais barata,   gripa e palhinhas da estação passada,  rotas folhas, impressos  arruinados pela inclemência de tempos urgentes, paina amarfanhada  e outros restos menos prováveis se juntavam. Isso, mais  penugens arrancadas ao dono, compunha o intricado berço agora coroado de vazio.
        Ao largo,  buzina de carro,  ônibus freando para passar  lombada,  canos de escapes rotos,  estridências, conversas cruzadas; a  cunhada, a cunhada da esposa, a vó, a  bisa, o pai, o filho. Ruídos de família.  O menino, recém-saído da fralda, rodeava-o, convencendo-o de que, sob a réstia de luz, valia a pena plantar grãos de milho num canto secundário do terreno financiado. 
          Ele ali,  vizinho,vizinhos, um olho no ninho, outro no filho com a mão esbugalhando semente.  Dentro, fora, o  sagaz silêncio.

quinta-feira, 13 de março de 2014

A maioridade

Vinte e um anos morando na cidade grande e  parcas habilidades  ainda de  transitar entre os citadinos.  Todo dia era isso, ele acordava, uma  ideia renitente  comprimindo o peito: “E se não passar de hoje?  E se  descobrirem a grande farsa que em mim se assenta?”
 Ele não era dali, ele nunca poderia  saber o que era ter nascido  e erigido, aí, seu castelo de conveniências. Por isso ele gostava de trabalhos impossíveis. De preferência encomendados, daqueles brabos, com data e hora para finalizar.
Não era a sua praia, nunca seria, mas às vezes achava que deveria estar  em uma agência de publicidade. - “Não é isso que dizem? Que marqueteiro tem deadline? Meia noite e... o último expiro!  E o glamour da publicidade? Ela que  se confunde com o nobre pressuposto de comunicar? Arras! Qual o que?”  
Só ideias. Isso. Ele era isso, só ideia. Nenhuma  mulher, algum emprego,  contas no escaninho da portaria do prédio, poucos amigos e um  ermo de sentimento. 
 Mas uma coisa era certa, todo dia, às 6:45, ele haveria de estar lá, na praça Rui Barbosa, exibindo musculatura e parcimônia  em exercícios  orientais. “Aqueles,  sabe? Aqueles que formam desenhos no ar.” 
 Ele  não supõe, mas sua disciplina chinesa,  em movimentos sincopados, braço direito  encontrando no ar a mão esquerda,  e o reverso,  braços e pernas abertos - da visão do homem vitruviano à simetria do universo... Ele  não saberá, mas seus fugazes  desenhos chineses  iludem  a moça triste que passa e, desavisadamente,  esquece de avançar no sinal verde, capturada pela ideia que,  ela imagina, deve acometer o talvez estrangeiro: “Cada um é cada um. Um dia ainda encontro a justa medida! Aí então serei tal qual um citadino.”