domingo, 27 de julho de 2014

Para ler

A qualquer hora do dia, vaga,  leio-lhe e perscruto-lhe. Entre idas e vindas um pensamento toma-me de assalto: de  restos e esboços  também se  faz um personagem de si.  Da junção de quase nada útil se insinua uma obra. Entre distraído e absorto,  chega-se repentinamente a essa dança fugaz. Então,  se houver palco, haverá ato. 
Ler requer várias investidas, à maneira da escrita. E é só de um ventre  vigoroso   que pode nascer a escritura. É   como no ato amoroso: uma ação  não desfaz  a outra, como vacilos e pensamentos inesperados  são bem-vindos.
Ler  não requer só ferramentas e  aparatos racionais: atravessamentos de opiniões, voluptuosidade, ecos, carícias, sussurros longínquos, recuos, tensão viril,  infusões passionais, olhares atônitos, qualquer  luz lúgubre   compõem a cena.  
São sempre plurais as leituras, especialmente quando  passíveis de intervenções  perturbadoras, aprazíveis, avassaladoras.
Se assim for,  quando concluídas, findam? Ou   seus   efeitos reverberativos permanecerão?

quinta-feira, 17 de julho de 2014

Do amor até a palavra


 Onde meus afetos? Eu os perco no caminho, como aquele  sapatinho vermelho que perdi na infância.  Lavo-me. Banho-me demoradamente e caio em tentação.  Descuido-me. Tento despir-me de qualquer ideia impregnada. Vem uma palavra e atira promessas. Recuo. Ignoro. Finjo não ver. As palavras  também são seres voláteis. Elas se oferecem e me abandonam com a mesma fugacidade com  que  sirvo à luz do dia. 
 Essa fronteira irrisória entre o que sou e o que pretendo ser,  isso ensina-me a palavra. E fico fazendo-me de esquecimentos, de mal-entendidos, de disfarces, porque uma vida não se dá, uma vida se inventa. Uma vida é um arremesso contra a descrença, um quase,  uma punhalada  na covardia.  
 As palavras são viscerais e, estáticas, restam aí juntando  pó, dando nó como correntinhas de ouro  finas demais, embrulha um pouquinho para ver no que dá? Abandone-as, ainda que involuntariamente  e, quando  voltar a si, não mais se distinguirá começo e ocaso...  E será preciso muito tempo para desemaranhar o nó. Porque palavra na garganta é isso: uma distração que sofre. O vil metal, tomado a desleixo.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Poeminha nascido com ares de um pássaro

Quero-lhe  no nada. Quero-lhe tudo.

 Quero seu avesso. Sua verdade inaugural.
Quero-lhe  tantas quantas forem  suas facetas e que, ocasionalmente,  diga-me aquilo que nunca pudestes dar.
Quero-lhe para além do ruído cotidiano.
Quero-lhe   até   não saber precisar  o que a mim ou a ti pertence.
Quero-lhe em  cada lampejo de lucidez e alegria. Quero-lhe assim: na incongruência, como  quero seu inferno e todas as sombras que desenham sua solidão ou espraiam suas nuances.
Quero-lhe,  à medida que o tempo passa, em  cada uma de suas novas acepções.
Quero-lhe no gozo  pouco previsível.
Quero-lhe a um só  tempo inesperado e fronteiriço.
 Quero-lhe  na vastidão do segredo,  na intimidade ignorada, na imprecisão contumaz.
Quero-lhe para quando eu não puder me fazer ouvir e você nada puder nomear.
Quero-lhe em cada vicissitude e  para não sucumbir   ao  enfado.
Quero-lhe para viver idiossincrasias.  
Quero-lhe na ferida exposta e  para quando não se puder   extirpar a dor.
Quero-lhe, com amor,  enfim: palavra!