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domingo, 2 de outubro de 2011

Vontade, absolvição e luto

Dia desses adjetivaram-me curiosa. Nem sei. Sempre quero saber dos outros. Daquilo que os move, de seus anseios, de seus desejos, de como domam o tempo, de que coisas os arremetem ao futuro. Deve ser por isso que alguém um dia disse: “o inferno são os outros”. Sim, são os outros porque eles podem. Eles parecem infinitamente capazes. Eu, de minha parte, acho que além dos outros o inferno sou eu. Que procrastino, que sofro, que faço doer cada desilusão e contragosto. Não, eu não sei criar metáfora para falar da fúria. Não, eu não sei fazer metonímia, tampouco transparecer sentimento senão pelo modo mais infantil e tosco: às migalhas, por lágrimas e silêncio inquieto. Nada compatível com viver adultamente. Mas quem disse que lá anos fazem uma vida ser menos sôfrega. Isso, intuo, deve ter pego raiz ainda no ventre. Essa pasmaceira, essa melancolia, essa impossibilidade de buscar utopia. E é preciso quase uma vida para expurgar vãos trôpegos. Não, eu não uso fitinha de Nosso Senhor do Bonfim ou de Nossa Senhora de Aparecida. Obrigada. - Talvez devesse? - De amuletos fartei-me. Mas sim, há quem use, ainda que não acredite. Sob o argumento sedutor de “há tantas coisas que precisamos fazer e nas quais não acreditamos”. A mim  bastar-me-ia poder voltar a rezar o Creio e, convencida da remissão dos pecados, começar semana nova, qual fazíamos quando crianças. Bastar-me-ia?
Quero o fel? Nada. Quero a ilusão? Quase. Quero uma vida inteira. E depois saber como vivê-la. Toda.

domingo, 30 de maio de 2010

Pipoca

         Pipoca é um grão absurdo. Desde a infância exerceu sobre mim seus poderes e mistérios. Um grão que podia ser e não ser milho. Em verdade aquelas varietais que cultivávamos tinham quase um espinho na ponta de cada grão, dificultando a tarefa de debulhá-las a mão. Mesmo assim, diferente do milho que, só quando muito jovem ou moído, mostrar-se-ia tenro e gentil, a pipoca fazia-se mais dócil e macia quando à boca.
          Que os grãos estourassem, era puro nonsense. Mas a isso acresciam-se os mitos e jogos de palavras. Durante o ato de estourar pipoca nós crianças tínhamos que “por o dedo no umbigo e esperar embaixo da mesa”, diziam umas vizinhas. Tínhamos que “pensar numa fofoqueira”, diziam aquelas que não se julgavam merecedoras de tão controverso adjetivo. Tínhamos que “pronunciar repetidamente um trava-língua sentença: 'Estoura pipoca, Maria pororoca'”, durante todo o tempo até que cessassem as explosões.
         Mas aquelas não eram terras de pororocas. E por que o nome de minha mãe entrava, de lambuja, no enunciado?
        Gosto de pipoca, como gosto de abóbora, batata doce, cana-de-açúcar, milho verde e tudo o que remeta ao cardápio da vida no campo. Mas pipoca tem sua nobreza. Com ela se faz trocadilhos e adivinhas. Da flor à pedra inócua, cada grão porta um mistério.
        Arrebentar  pipoca é como viver a vida: pequenas explosões que se sucedem. Precisa-se do todo para ter uma noção do conjunto. Precisa-se da parte para não perder a noção de realidade. Nuances.
          Estalar pipoca é transformar um grão em monumento.
        Devora-se  uma  grande quantidade de pipoca para sentir-se momentaneamente completo, como de devorar ilusões se faz a vida.
         Pipoca é fugaz como felicidade e repentina como vida.
        
         O que é, o que é? Que pula pra cima e se veste de noiva?

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Ao cabeleireiro

         No salão chinês tive meus cabelos aparados ao som de uma música francesa, enquanto tentávamos nos entender, a cabeleireira vietnamita e eu, ambas falando uma língua tomada de empréstimo. Eu acho gozado que toda a vez que vou lá ela põe aquela música francesa pra tocar. Acho que para criar um clima. Eu fico tentando adivinhar o que ela tem por ideal de beleza - talvez querendo remeter as clientes à aura do glamour cosmopolita europeu.      
         Enquanto divago, ela começa os procedimentos em meu cabelo. Meu cabelo, aliás, é muito simples. Não tem tintura, é liso como um cão molhado e obedece  múltiplos comandos. Mas mesmo assim ela dispensa-lhe mil tratamentos.
         Essa cabeleireira tem um padrão frenético de cortar cabelos. Não há exatamente uma lógica, um alinhamento, uma sequência ordenada de ações, aquela coisa de prender a parte superior com grampos e ir cortando de baixo para cima. Nada disso. É uma dança aleatória e mortal contra os fios. Ela tanto me penteia, como joga ares quentes tentando secar o cabelo, como  desfia, corta, mede, compara, ajusta  e apara.
         De minha parte, fico entre expectante e  desconfiada querendo saber como tudo vai terminar. E ela continua. Vendo que secou demais, borrifa águas e aromas novamente e repete o frenesi de volteios tentando domar os fios.
         Então chega a parte mais esperada por mim, quando ela, repentina e compulsivamente, começa a trocar de tesouras. Afinal para cada fio há uma lâmina e uma inclinação que melhor se adéquam. E são tesouras pontiagudas, arredondadas, longas, pequeninas e finalmente aquela que é misto de tesoura e pente. Teleguiadas, elas escolhem e picotam meu cabelo em todas as suas direituras.
        Entremeio a tantos procedimentos a cabeleireira arrisca me perguntar algo e me alcança os espelhos. Eu digo qualquer coisa, porque mesmo não entendi o que ela falou, tampouco enxergo sem meus óculos. Entregue à sorte, deixo-me estar. Tão bom não ter em que pensar.
        Eu tenho um amor simples pelo ato de cortar cabelo, como tenho um desespero. Eu sempre tive. Para mim é cada vez uma ação inaugural, uma grande expectativa, um evento do qual não sairei ilesa. É como na vida, por mais que se queira, nem sempre dá pra prever o corte final.

domingo, 15 de novembro de 2009

Qual sede

         Há dias em que Ela acorda sentindo muita sede. Para matar a desse tipo só bebendo mesmo a água da nascente, que vem da pedra e se traduz em olho d’água. Mas onde esse lugar? Em dias assim Ela se vê estranhamente diferente dos outros, tanto que até quereria encontrar uns seus iguais para poder dizer: reconheço-me. Paradoxal, muito diariamente sofre e abomina tantos sentimentos que não sabe nomear. Ela queria ter algo para chamar de seu. É quando o excesso de chão a põe no abismo, como precisar pisar e faltar em que. Ela nutre um cisco de esperança por acreditar que tem coisa que nem se pronuncia, só olha, e de tanto olhar chega o tempo que tudo olha pra gente. E daí já se sabe aquilo que parecia difícil apreender.
          Qual vida, qual sede, assim é Ela.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A vida não chega

        Fernando Pessoa fingiu seus heterônimos para fazer caber em algum lugar aquilo que não lhe cabia mais em si.
       Clarice Lispector deu voz a seus personagens femininos para fazer todas as perguntas impossíveis de serem respondidas, mas indispensáveis para se viver uma vida.
       Luigi Pirandelo em “Um, Nenhum, Cem Mil” nos diz do quão intrigante são as percepções que os outros fazem de nós, como o são também as impressões e certezas que temos a nosso respeito, para por fim notar que nenhuma delas parece coincidir exatamente com o que somos.
       Julio Cortazar inventou seus “Cronópios e Famas” para fazer a alegoria dos tipos humanos e suas atitudes diante da vida.
       Ítalo Calvino desenhou “ As Cidades Invisíveis” pelas quais podemos viajar e sentir melhor esse lugar onde habitamos.
       Elias Canetti iluminou e absolveu sua biografia criando “A língua absolvida” e “Uma luz no meu ouvido”.
       Cada um escreve sobre o modo como olha pelo vão da vida. E a lista de exemplos termina infinita porque, como afirmou Fernando Pessoa, “A literatura é a melhor prova de que a vida não chega.”

domingo, 25 de outubro de 2009

Para encher um domingo

Quase uma dúzia de imagens colhidas ao caminhar pelo domingo:
Uma caixa de correio presa à porta do cemitério.
Uma árvore cor-de-rosa.
Um corvo à Edgar Alan Poe procurando restos.
Um ganso lustrando as penas azuis.
Um esqueleto dócil sorrindo à janela.
Um varal com desenhos infantis preenchendo a sala de estar.
Um gato preto guardando a casa vazia.
Dezenas de abóboras enfeitando uma árvore púrpura.
Um pescador com seu barco às costas.
As árvores em seus trajes de gala outonais desfilando em tapetes de folhas.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

As janelas

      Do alto da minha janela avisto as figuras do sem fim. Da janela há quem se ponha a espreitar os vizinhos ou simplesmente deixe-se e coloque-se a ver a vida passar entrecortada. Do vão da janela derrubam-se coisas, às vezes salvas por um fio  agudo e fino de vida que escorre. Da janela também se lança o suicida, no impulso de enfim agir e poder viver na sua escolha. As janelas nos salvam do desvario ou nos arremessam nele. Eu sempre consulto as janelas e tento adivinhar a cor do dia. Mas quase nunca acerto.
      A vida é um vão.

sábado, 17 de outubro de 2009

Todos os caminhos levam à Roma

         Quer bicho mais capcioso que formiga? Elas simplesmente desconsideram a gravidade, a elegância e os bons costumes. E quando menos se espera, lá estão elas dentro das gavetas e armários, lambendo seu pote de mel, enfiando-se em qualquer fresta, ignorando qualquer etiqueta, dispensando qualquer convite e adentrando o menor dos recintos.
          Tentei ser ácida: dei-lhes limão, vinagre.
          Tentei ser aromática: tratei-as com canela em rama, noz-moscada, cravos-da-índia.
         Tentei ser nobre e respeitosa: ofereci-lhes folhas de louro.
         Tentei ser diplomática e burocrata: rejeitaram meus pedidos de que deixassem o recinto e afrontaram minhas ordens de despejos.
         Tentei ser persistentemente maligna, esganando-as uma a uma ou macerando-as aos bandos, enxotando-as da minha cozinha, varrendo-as para fora do meu terreiro, condenando-as deliberadamente aos piores castigos, como morrerem escaldadas.
        Arrependida, abandonei a truculência e dei-me por vencida. Qual o que? Querem ficar por aqui? Agora emprego métodos mui amenos e, mesmo sem discutir a relação, seguimos juntas.
      A receita? Simples. Alimento-as periodicamente com os melhores açúcares. Parcimoniosamente deixo-lhes bom punhado de grãos finos na borda do vão, entre o piso e parede, que conduz ao formigueiro. Elas os perscrutam com as minúcias usuais e põem-se a carregá-los para dentro de seus labirintos inalcançáveis.
      Sigo minha vidinha e elas seguem a delas.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

“Provavelmente, a vida é redonda.”

          Foi com essa intrigante declaração de Van Gogh que me deparei dias atrás quando lia A Poética do Espaço, de Bachelar. E ela me fez recordar meus primeiro anos na Escola Básica Volta Redonda. Esse nome me parecia uma redundância. Sim, se era uma escola, deveria ser basilar, fundante, como devem ser tais instituições. Agora como uma volta poderia não ser redonda? Seria então elíptica? Esta última  foi uma pergunta que eu não me fiz, nem meus professores me encorajaram a fazer naqueles anos e que meus parcos conhecimentos de Física não me permitiram responder. Tanto melhor! Fiquei para sempre intrigada com a história da volta redonda e agora Van Gogh me responde: “Provavelmente, a vida é redonda.” E isso me basta para seguir perguntando: que raios querem dizer com isso?