quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

"O presente nunca é o nosso fim"

"Nunca ficamos no tempo presente. Lembramos o passado; antecipamos o futuro como lento demais para chegar, como para apressar o seu curso, ou nos lembramos do passado para fazê-lo parar como demasiado rápido, tão imprudentes que erramos por tempos que não são nossos e não pensamos no único que nos pertence, e tão levianos que pensamos naqueles que nada são e escapamos, sem refletir, do único que subsiste. É que, em geral, o presente nos fere. Escondemo-lo de nossas vistas porque nos aflige e, se ele nos é agradável, lamentamos que nos escape. Buscamos mantê-lo mediante o futuro e pensamos em dispor as coisas que não estão em nosso poder por um tempo ao qual não temos a menor certeza de chegarmos. Examine cada um os seus pensamentos. Vai encontrá-los a todos ocupados com o passado ou com o futuro. Quase não pensamos no presente, e se nele pensamos é somente para nele buscar a luz para dispormos do futuro. O presente nunca é o nosso fim. O passado e o presente são os nossos meios, só o futuro é o nosso fim. Assim não vivemos nunca, mas esperamos viver e, sempre nos dispondo a ser felizes, é inevitável que nunca o sejamos." (Fragmento de “Pensamentos”, Pascal)

     Quis partilhar com vocês este trecho que li (aqui) dias atrás e achei inspirador para esta época de fim de um ano e estréia de outro. É mesmo incrível como às vezes  parecemos  seguir essa humana tendência de adiar a felicidade ou colocar nossos pensamentos em outros lugares que não na surpresa de viver o presente!
     E já que desejarmos boas coisas uns aos outros ajuda aplacar a distância e reaviva a esperança em mundo melhor para todos, eu desejo que nós possamos aprender mais e mais em 2010 e sejamos felizes na medida de cada “presente”.

Boas Festas para todos e até 2010!

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Por que?

       Ontem, à livraria, encontrei duas frases que ilustram minhas ideias sobre os caminhos que se inventam. Eu gosto de pensar e saber sobre o que  move cada um de nós. Eu gosto de perceber como as inquietudes, razões e respostas divergem. Eu gosto de perguntar por que escolhemos estas e não aquelas searas, por que nos aventuramos em tais plagas, por que seguimos inventando e lutando o destino? É sempre inspirador ver a vontade dos outros desenhando sonhos, como é sempre intrigante ver onde nossas próprias vontades nos lançam.

Às frases:
“Um pássaro não canta porque tem uma resposta. Canta, porque tem uma canção.” (Provérbio Chinês)

“É da natureza humana querer partilhar ideias e eu acredito que, primeiramente, todo artista deseja não mais que contar ao mundo o que tem a dizer. Eu tenho ouvido alguns pintores afirmarem que produzem para si mesmos, mas eu acredito que eles teriam rapidamente esgotado suas chances se vivessem em uma ilha deserta”. Escher

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Os anos inominados

Escrito por Carol Tulpar. Traduzido por  Silvia Pandini. (A versão em inglês pode ser lida aqui.)

        É incrível, está tão perto do fim e nós ainda não sabemos como chamá-lo. Muito em breve teremos que nos reportar a ele. Mas como designá-lo? O nome deveria ser uma palavra que incluísse e  nomeasse todos os grandes progressos alcançados nesta primeira década do novo milênio.
        Embora nós costumeiramente nomeamos as década, por exemplo os anos sessenta ou os anos noventa, para esta década isso não funciona. Esses anos parecem enrolar a língua e ainda precisam lidar com um estigma de malditos. Ademais, os anos zeros parecem soar muito pretensiosos.
        Os anos zeros? Esse nome é muito fora de moda, (e naughties, palavra arcaica que era usada como sinônimo para zero, ambém os aproxima demasiadamente do adjetivo nauthy: peralta, traquina).
        É verdade que no último século os anos vinte foram efusivos e os anos trinta miseráveis. Mas será que realmente queremos que as gerações futuras pensem que toda a primeira década do novo milênio foi vazia?
       Ainda há alguns de nós que se lembram que ought e naught costumavam ser sinônimos da palavra “nada”. Mas é duvidoso que qualquer pessoa com menos de 70 anos se lembre que o jogo da velha costumava ser chamado de zeros e cruzes, em vez de ser chamado de jogo dos X e O.
      Se usarmos ought e naught facilmente o significado original tornar-se-á obscuro e as gerações vindouras ficarão com a pulga atrás da orelha em busca de um significado para isso. Mas afinal, quem ainda joga o jogo da velha? Ele requer aqueles implementos primitivos: lápis e papel. Nós estamos para além destas simples ferramentas. Até mesmo uma criança, por pequena que seja, comunica-se estritamente por computador e iphone.
        Certamente não podemos duvidar da década dos zeros ou dos vazios. Usar qualquer um desses nomes traz o risco de mal entendidos ou  de sermos injustos. E sem dúvida, os jovens crescidos durante esses anos poderiam se ressentir se sua década fosse denominada como um tempo vazio.
        Au contraire. Eles naturalmente preferirão que sua década seja lembrada pelos grandes progressos técnicos e sociais que a marcaram. E há muito do que se orgulhar. Esta foi a era em que o telefone fixo, desprestigiado por seu nome redutor e por seu status de imobilidade, aproximou-se da obsolescência.
       Este é o tempo em que se tornou impossível ouvir uma voz humana ao vivo ao se realizar uma chamada para um número comercial graças às infinitamente superiores secretárias eletrônicas, cada qual com sua nauseante variedade de opções. O tempo em que as pessoas começam a ignorar o telefone tocando, a fim de evitar ouvir as mensagens eletrônicas vindas de ligações que tentam vender desde limpa-carpet a calendários de bombeiros sexys. Espere! Calendários de bombeiros sexys? Inclua-me nessa!
          Esta é também a era da larga disseminação dos telefones celulares, uma invenção maravilhosa que tornou possível voltarmos a falar ao vivo com uma pessoa, desde que também tenhamos nosso celular. Mesmo quando telefones celulares eram primitivos e não ofereciam a opção de mensagem de texto ou video games, este novo objeto deixou sua marca. Primeiramente ele dobrou nossas contas de telefone e tornou impossível não atender chamadas. Ele certamente tornou os trajetos mais interessantes. No trem, as pessoas não precisam mais se entediar compenetradas em seus próprios livros ou pensamentos, porque rapidamente a atmosfera será preenchida por pelo menos um lado de uma conversa particular.
          Esta década de progressos também será lembrada como o tempo em que os celulares se metamorfosearam em câmeras. E isso é muito relevante, pois significa que agora podemos tirar fotos tão minúsculas que ninguém poderá ver nossas rugas ou cabelos brancos, isso se for possível ver nossos rostos.
         Claro que este também foi um tempo revolucionário para os estudantes. Habituados à tela do computador, imensamente maior que a página regular, eles começaram a esquecer o que significa página impressa. Certamente agora há pouca demanda por algo tão fora de moda como o livro impresso. Em casa, há o computador com monitor LCD 19” e ninguém sai de casa sem o blackberry. (eu confesso que eu costumava pensar que blackberries eram as frutas selvagens que crescem ao longo do Dique Serpentine. Agora eu sei um pouco mais sobre isso.)
          Ir à aula tornou-se muito mais excitante quando os alunos trazem seus celulares, carregados de divertidos ring tones. Agora eles podem jogar jogos eletrônicos ou mandar mensagem de texto e manterem-se entretidos enquanto a professor chato divaga em tom monótono.
          É verdade que há algumas pequenas inconveniências. Hoje, pessoas que, à moda antiga, carregam suas agendas de endereço, precisam abrir espaço para anotar endereço de email. E aquelas que pararam no tempo e não usam computador, usam computadores lentos ou não tem Real Player Plus não podem mais abrir seus cartões de Natal, quando os primitivos cartões de Natal de papel que costumavam ser enviados pelo correio (agora considerado lento como lesma) estão praticamente esquecidos.
        Quando o computador pessoal se tornou indispensável, as regras colocadas pelos pais foram esmaecendo, uma vez e para sempre. Aqueles destemidos pais e mães que tentaram incutir horário de dormir em seus filhos quando surgiram CSI, Frasier ou até mesmo Survivor, já não podem mais manter a TV fora do quarto de dormir dos filhos. Negar às crianças o acesso ao seu próprio computador pode significar comprometer sua educação e seu futuro. E quando o download começa, os adolescentes racionalizam: “Mas Mãe, Pai, se eu baixar a série posso assisti-la inteira sem comerciais!”
        Estamos às voltas com este tempo em que  conversas ao vivo estão se tornando obsoletas. No banco os clientes atendem ao celular embaixo do nariz do atendente. E os consumidores começam a usar seus celulares em vez de listas de compras.
        “Eu estou no mercado. Você precisa de alguma coisa?”
        “O que? desculpa, preciso desligar. O programa está começando. Ligo pra você depois”.
         A velha tradição de fazer as refeições em família passou para a história e cada um agora é livre para comer diante de máquinas amigáveis que nunca  pedirão que se mastigue a comida ou  se coma legumes.
        Bom, de qualquer maneira, em apenas um mês esta década brilhante terá terminado. Quando nosso novo milênio entrar na adolescência nós teremos que nos referir a esta década de algum modo. Como a década que experienciou um aumento substancial na venda de telefones e, consequentemente, em vendas via telefone, ou talvez a década da pretensão soe mais familiar?

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

"Teachers and Mills"

      Meu post “Professores, moinhos e gigantes”, originalmente publicado neste blog em outubro, foi traduzido hoje, a quatro mãos, por mim e por minha mais nova parceira de blogsfera. Em breve traduzirei um dos posts escrito por ela. Devo dizer que os caminhos da tradução são oblíquos. Mas o maior objetivo  aqui é ensaiar - ou seria  ser feliz?

Guest blog by Silvia Pandini: "Teachers and Mills"
Translated from the Portuguese by Silvia Pandini and Carol Tulpar.

     The chaff-coated millstones of my childhood were powered by wind, water and circling oxen. These stones created miracles: rice grains were cleaned, corn and wheat were transformed into flour, and the smoked leaves of yerba mate became a delicious tea.
     As I moved out from the small farm of my childhood, I discovered larger mills and greater miracles. When Ney Matogrosso sang about how the north wind does not drive the mill, I began to wonder which of our efforts are pointless, which are necessary and productive, and which can bring us varied and unpredictable results. All are generated by the energy of the same wind.
     The most evocative mills are those of the imagination, and Cervantes is their most brilliant creator. Like Don Quixote tilting at the windmill giant, we see what we are willing, able and eager to see.
     The artist Rembrandt also painted mills of moving and unforgettable beauty that have remained forever engraved on my mind.
      In Brazil, we have a special day to celebrate teachers. Yet why should we need a special day to celebrate the daily joys of learning and discovery?
Here’s to those who plough the land, simultaneously teachers, mills, and giants. May they enjoy long and fruitful lives.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Caleidoscópio e retratos

        Nos retratos de família a descoberta de mais algumas faces deste caleidoscópio que inventamos ser.  Uma das características deste pernóstico instrumento, o caleidoscópio, feliz ou infelizmente, é carecer ser guiado por mãos alheias. Ele contém em si uma gama de possibilidades incríveis e belas. Entretanto, como na vida,  o acaso também decide o desenho que se adivinha. Certa vez comprei um caleidoscópio para dar de presente, mas acabei ficando com ele porque achei que poderia precisá-lo em noites de longa vigília, para quando eu quisesse ser feliz ou para nada, pois que gosto dessa categoria de objetos. Aí eu olho para o caleidoscópio, como olho para esses recortes do passado, e posso dizer: pareço-me com isso. Embora eu nem sempre seja de cores e flores.

sábado, 12 de dezembro de 2009

Que parte de mim escreve?

Para ontem, hoje e sempre: escrevo.
Por perguntas sem ter hora: escrevo
Para viver amor ausente: escrevo.
Por tédio, absolvição e luto: escrevo.
Para nomear o inexistente: escrevo.
Por transitar entre línguas: escrevo.
Para aplacar dor reticente: escrevo.
Por meus pés nem sempre saberem onde pisam: escrevo.
Para bendizer e macular: escrevo.
Por meus olhos fingirem adormecer: escrevo.
Para viver do inominável: escrevo.
Por querer sonhar o porvir: escrevo.
E enquanto escrevo que parte de mim escreve?

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A geada na cidade e a geada no campo

       Nas  terras do norte é assim: é de manhã e os habitantes tentam resgatar seus carros cobertos pela geada. É meio do dia e lá está ela intacta. É fim do dia e a geada segue a esmo para as galerias pluviais. Tudo nessa geada é excêntrico: sua cor, seus modos e os lugares que encontra para ficar existindo. Talvez porque a geada na cidade pareça fora do lugar, pois que perde um pouco seu status natural por não encontrar solo macio no qual se aconchegar. Na cidade, as ruas e telhados e todos os artefatos humanos interpõem-se em seu caminho e ela fica tendo que achar vãos por onde estar. Acaba que ela encontra uma ou outra beira, depressão ou meio-fio e ali fica, congelada, abismal, quase suicida.
       A geada no campo, como a vida no campo, tem qualquer coisa de mais real.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Retrato de uma ausência

     Um irmão fisgado inesperadamente pelo fio da morte pode ser reconhecido em lugares muitos. Em vãos. A esmo. Num recorte de patchwork visto de relance na roupa de alguém. No andar da formiga sobre a pele. Na fotografia escondida na gaveta. Nas cartas deliberadamente guardadas. Na audição de sua música predileta. Na memória de seu legado. Na palavra que se escreve. Na escolha por fazer. Na lembrança do amor herdado. Na ferocidade do tempo. Nos ermos que se perfazem.
     O retrato da presença/ausência de um irmão é indelével.
     Um irmão ausente pode para sempre ser encontrado.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Detestável sentimento

Caetano cantou que “O antropólogo Claude Lévi-Strauss detestou a Baía de Guanabara”.
Donde intuo que, apesar da índole violenta da palavra, quase todos detestam alguma coisa.
O estudante asiático detesta o próprio nome e aos 17 anos sonha em comprar um nome americano.
A fisioterapeuta iraniana detesta não poder usar seu próprio nome e precisar escolher um nome facilmente pronunciável em língua americana.
O engenheiro chinês detesta seu sub-emprego em terras estrangeiras e sonha finalmente dedicar-se às aproximações entre Ética, Ciência e Arte.
O garoto sul-africano detesta o frio de Quebec menos do que a língua inglesa.
A contadora polonesa detesta pessoas que dizem não ter tempo livre.
A policial russa detesta a teimosia do marido.
O enfermeiro japonês detesta sangue e preferiria ser curador de arte.
A professora canadense detesta o mau emprego das palavras nunca, todos e sempre.
O músico thailandês detesta instrumento desafinado por pouco uso.
A blogueira brasileira detesta notar que há dias em que se fica sem inspiração.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Um pai é um emblema

       Maninho costumava ser um dos apelidos de meu pai. Não sei por que, eu nunca entendia esse apelido. Eu demorei para associar o apelido ao significado da palavra. Para mim, Maninho era meu pai e não um substantivo comum que pudesse ter sinônimo.
       Enfim, em eu criança, nunca lhe chamei Maninho, como nunca lhe chamei papai.
       Eu acho tão terno falar papai. Eu nunca fui ensinada a falar papai.
       Parece que hoje eu posso falar papai, pois os anos passaram para ele e para mim. Ele já não é, ele já não soa tão feroz. Ele não figura mais e tão somente na versão pai. Posso tê-lo também na versão papai. Posso tê-lo em quantas versões quiser, afinal um pai é uma divisa.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Quem?

         Quem por estes dias:
Recebeu e-mail antigo? Ouviu nuvens? Foi surpreendido? Sentiu-se agradado? Experimentou ser acarinhado? Esteve comovido? Provou saudades? Nomeou desejos não pronunciados? Ignorou? Partilhou? Reviu crenças? Cheirou afetos? Enriqueceu? Sentiu-se invadido? Nauseou-se por desilusão? Resignou-se? Escandalizou? Delirou palavras? Controlou-se? Criou dilemas? Deliciou-se culturalmente? Lambeu solidão? Absorveu esperança? Sorveu a terra? Escutou árvores? Engoliu estrelas? Encontrou lagartixas e galinhas de penas nacaradas? Cavou tesouros dados por remotamente escondidos? Experimentou rituais? Amou? Tirou férias? Dormiu bem? Leu jornais? Surpreendeu outrem? Escreveu? Seduziu? Divertiu? Bajulou? Provocou? Satirizou? Agradou? Beijou? Retirou máscaras? Arranjou outras? Inventou? Mimou? Comoveu? Desfez-se? Agradeceu? Foi ao cinema? Viu-se estando no mundo? Foi feliz?

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Ossos de vidro

Ele? De vidro?
Nem tão frágil.
Nem sempre transparente.
Raspado, tingido, polido, escovado, fosco, espelhado, colorido, translúcido.
Passivo a transmutações de formato e cor quando submetido a altas temperaturas.
Querendo-se,  reconstituível. Nunca duplicável.
Sempre envolto  à substância vitrificável. Quase diáfano.
Quem é você, sentimento que se anuncia  e desmancha a cada dia com seus ossos de vidro?
Uma atmosfera de enigmática  curiosidade sempre rondou minhas percepções.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

No ventre

No ventre a música, feição entre dois nós.
No ventre a raiz, bojo do passado.
No ventre a palavra, escandalizando intimidades.
No ventre o fio a esculpir o futuro.
No ventre o desejo a sonhar o porvir.
No ventre a vontade, desenhando o presente.
No ventre a víscera, remoendo o infinito.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ermos

Por minha alma ser esse ermo,
Eu aprecio jarras e boiões antigos que se tem em casa para ali estarem, vazios.
Eu sou capturada pela alternância de azul turquesa e brancos não preenchidos nas peças de faiança.
Eu fotografo ninhos vazios.
Eu leio cartas antigas.
Eu lembro das estampas e tecidos que minha  mãe usava quando grávida da minha irmã.
Eu vejo álbuns amarelados.
Eu anoto fragmentos.
Eu velo a esponja vegetal toda cheia de vazios.
Eu procuro, na cidade vazia, pelo simples hábito de procurar.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Ao cabeleireiro

         No salão chinês tive meus cabelos aparados ao som de uma música francesa, enquanto tentávamos nos entender, a cabeleireira vietnamita e eu, ambas falando uma língua tomada de empréstimo. Eu acho gozado que toda a vez que vou lá ela põe aquela música francesa pra tocar. Acho que para criar um clima. Eu fico tentando adivinhar o que ela tem por ideal de beleza - talvez querendo remeter as clientes à aura do glamour cosmopolita europeu.      
         Enquanto divago, ela começa os procedimentos em meu cabelo. Meu cabelo, aliás, é muito simples. Não tem tintura, é liso como um cão molhado e obedece  múltiplos comandos. Mas mesmo assim ela dispensa-lhe mil tratamentos.
         Essa cabeleireira tem um padrão frenético de cortar cabelos. Não há exatamente uma lógica, um alinhamento, uma sequência ordenada de ações, aquela coisa de prender a parte superior com grampos e ir cortando de baixo para cima. Nada disso. É uma dança aleatória e mortal contra os fios. Ela tanto me penteia, como joga ares quentes tentando secar o cabelo, como  desfia, corta, mede, compara, ajusta  e apara.
         De minha parte, fico entre expectante e  desconfiada querendo saber como tudo vai terminar. E ela continua. Vendo que secou demais, borrifa águas e aromas novamente e repete o frenesi de volteios tentando domar os fios.
         Então chega a parte mais esperada por mim, quando ela, repentina e compulsivamente, começa a trocar de tesouras. Afinal para cada fio há uma lâmina e uma inclinação que melhor se adéquam. E são tesouras pontiagudas, arredondadas, longas, pequeninas e finalmente aquela que é misto de tesoura e pente. Teleguiadas, elas escolhem e picotam meu cabelo em todas as suas direituras.
        Entremeio a tantos procedimentos a cabeleireira arrisca me perguntar algo e me alcança os espelhos. Eu digo qualquer coisa, porque mesmo não entendi o que ela falou, tampouco enxergo sem meus óculos. Entregue à sorte, deixo-me estar. Tão bom não ter em que pensar.
        Eu tenho um amor simples pelo ato de cortar cabelo, como tenho um desespero. Eu sempre tive. Para mim é cada vez uma ação inaugural, uma grande expectativa, um evento do qual não sairei ilesa. É como na vida, por mais que se queira, nem sempre dá pra prever o corte final.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Esboços de duas figuras por aí afora (II)

         Dia desses, para Ele, e bastante para si mesma, Ela encorajou-se com a força dos adornos de todas as épocas, saiu à rua e deixou-se retratar por estranhos. Ele não estava. No romper da madrugada, Ele quis chegar. Ela correu para aprisionar as palavras que, deixando-se cair da boca, fugiam dos lugares onde tinham sido cuidadosamente dependuradas, como piercing à língua. Mas nessas horas elas eram lépidas por demasiado. O engraçado é que às vezes Ela tentava linimentos de palavras contra o corpo e isto lhe provocava algum tipo de prazer carnal, uma espécie de comoção áspera com propriedades curativas. Descobriram que Ela tinha vários planos e desejos eróticos ocultos, que a educação de uma mulher séria nunca deixariam revelar. Embora que tem coisa que não dá pra guardar pra sempre. Causava-lhe estranheza pensar que Ele não sentisse saudades. Vivia perdido em volteios, com um olho no peixe e outro no gato. Mas eram muitas as voltas que ambos davam antes de sorrir com a palavra mal engolida no canto da boca. Eles iam por aí.

sábado, 21 de novembro de 2009

No entre lance

         Ainda ontem, de entre lance, Ela foi vista enquanto andava catando folhas e pétalas sedosas com as quais enchia os bolsos. Aparando o cabelo, um xale pintado a flores do qual brotava longa franja. Ela desfilava por aí. Depois as pétalas caíram e estava desnuda. Pensou: minha alma se despiu, tal qual um sapo que pula pro brejo e deixa a pedra mais endurecida pela fuga daquela existência. O que fazia nestas horas em que precisava tanto dos outros era ilusão. Fotografava ninhos vazios, que a estação estava propicia. Ia ao bugre, que era pra tudo, e recebia compostos saídos de boiões antigos para se tomar à gota pouca. Ele não lhe prometia nada, mas pedia que anotasse a vida e passada a quarentena voltasse com tudo escrito, na cabeça os sonhos sonhados. Mandavam que fosse feliz, coisa que Ela, com mais e menos força, tentava levar à risca. Ela ia por aí.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Good for nothing

Lista de coleções que eu poderia ter:
Papéis com texturas e gramaturas diferentes.
Fotografias artísticas.
Retalhos de tecidos estampados.
Caixinhas.
Bolsos.
Bolsas feitas à mão.
Botões.
Folhas.
Linhas coloridas.
Poemas e excertos de livros.
Fragmentos da natureza, como galhinhos e tronquinhos.
Então, como num conto de Ítalo Calvino, eu os proclamaria: Good for nothing!
Essas são as coisas nas quais sou formada.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Em país alienígena

      Em país alienígena vejo habitantes que:
Vendem e vestem botas de borracha para  quaisquer ocasiões:  ao passeio ou aos trabalhos urbanos. Essas botinas nós as usávamos em criança estritamente para as lides no campo.
Não temem a chuva, nem quando ela se mistura a flocos de gelo como ocorreu hoje. Saem paramentados com botinas, jaquetas, gorros, luvas e o guarda-chuva. Quando não, pedalando bicicleta, com mais o cachorro e os miúdos a tiracolo.
Consideram 3ºC uma temperatura agradabilíssima.
Aplicam o conceito de belo às folhas vermelhas e gastam horas juntando-as, pois nesta estação elas tomam conta da cidade.
Bebem café morno o dia inteiro, pretendendo que isso os aqueça.
Têm suas línguas para chamarem maternas.
Transitam entre línguas maternas e a oficial.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Confissões

Eu aponto lápis para gozar o momento de.
Eu bebo café sem açúcar porque quero até a última gota do aroma.
Eu leio dicionários diariamente por gosto e precisão.
Eu carrego palavra como quem carrega um filho.
Eu fico imóvel para não perturbar a transparência fugaz das lagartixas.
Eu remeto bilhetes e cartas de amor que formulo em meus olhos antes de dormir.
Eu choro longe dos espelhos.
Eu adormeço com óculos esperando ver melhor o que sonho.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

O desejo de Madalena

Madalena tinha lá suas frases de efeito:
Conferindo as próprias axilas no fim do dia, espantava-se: que cheiro é esse? Não sou gambá.
Se lhe cortavam o cabelo demasiadamente, resmungava: estou tosada! Não sou uma ovelha!
Acometida por insônia intermitente, ralhava consigo mesma: durma, não és morcego.
Quando lhe davam serviços superiores as suas forças, indignava-se: não sou burro de carga.
Em dias de insatisfação própria de mulher, chiava: este cabelo acha o que? Não sou galinha d’angola.
E se seu homem não queria lhe chupar as partes, aborrecia-se: não sou uma porca, sou limpinha.
Para o caso de ele se achegar nela afoitamente, advertia: não sou coelho.
Se ele não lhe pegasse nos peitos como devia, atirava: não sou uma vaca.
Madalena queria se convencer de que era mulher.

domingo, 15 de novembro de 2009

Qual sede

         Há dias em que Ela acorda sentindo muita sede. Para matar a desse tipo só bebendo mesmo a água da nascente, que vem da pedra e se traduz em olho d’água. Mas onde esse lugar? Em dias assim Ela se vê estranhamente diferente dos outros, tanto que até quereria encontrar uns seus iguais para poder dizer: reconheço-me. Paradoxal, muito diariamente sofre e abomina tantos sentimentos que não sabe nomear. Ela queria ter algo para chamar de seu. É quando o excesso de chão a põe no abismo, como precisar pisar e faltar em que. Ela nutre um cisco de esperança por acreditar que tem coisa que nem se pronuncia, só olha, e de tanto olhar chega o tempo que tudo olha pra gente. E daí já se sabe aquilo que parecia difícil apreender.
          Qual vida, qual sede, assim é Ela.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Porque, no princípio, já era o verbo

         O homem contemporâneo parece-me vítima e algoz do vão. Carece ele de algum verbo novo que o descreva?
         Entre páginas e páginas on line, navega. Entre grãos e grãos de poesia, garimpa. Entre livros e livros por ler, cata. Entre notícias de um mundo alargado, esgravata. Antes de bicar o que vai lhe nutrir, cisca alimentos de origens remotas vendidos na quitanda da esquina. Quer resumir? Twitta. Palavra nova? Nada, emprestada. Twitter em inglês pode, dentre outras coisas, significar o breve som emitido por alguns  pássaros. Então twitter é isso: um canto à brevidade, um espasmo da palavra.
        E como fazer caber um devaneio em 140 caracteres?
       Em matéria de desejo estamos de novo e sempre às voltas com o mesmo, desde as priscas eras da civilização. Mais do que palavras novas, precisamos de ideias inaugurais, ainda que as perguntas sejam antigas.
       E eu lhes deixo com uma, formulada pelo moleiro Menocchio e relatada por Carlo Ginzburg, “como ungir o espírito?”

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Germinal

        Às vezes Ela engolia tudo. Há quem diga que a gula é o avesso da fome, mas para Ela, pode que seja muita fome recolhida de tudo que existe ou pudesse existir. Quando conseguia, Ela anotava algumas coisas que depois eram transformadas a qualquer hora que estivessem prontas para ser. O duelo entre aquelas muitas versões de escritos e de si mesma, havia vezes, rasgavam-lhe as entranhas. Uma prima, vinda de longe, mandou que Ela largasse essa muleta de ser mulher frágil , fraca, à maneira de uma galinha enxotada do ninho. Mas, Ela moía de si para si, galinha enxotada do ninho também se empina e para lá acaba voltando, bico em riste, patas sóbrias a pisar o chão, asas abertas por o bicho pretendendo ser maior do que é, um tipo de fúria enfim. A galinha que volta pro ninho pra terminar o que começou é a moral da criação da mulher forte, absoluta síntese ou rejuntamento de ossos, cacos, cascas. É o próprio ovo germinal.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Flores de Plástico

      Eu repudio flores made in china porque eu não gosto de imitação. Quero o espinho sangrando a carne. Eu acho uma flor imersa em um copo d´água tão mais bonita. A calêndula, por exemplo, é filha do mistério. Ela exala perfume que remete ao campo, pode se disfarçar de flor vulgar aos olhos incautos e ademais atribuem-lhe poderes cicatrizantes. Minha alma anda tão esgarçada, moléstia deste meu incompreensível sentimento do mundo. Em dias assim sou meu próprio nocaute, oponente, juiz, rede, tatame. Mas, coragem, já é 4ª feira e eu tomo chá de pétalas e flores.

Mudar


Primeiros resultados de três dias em nova residência:
Novo molho de chaves e mais senhas e números secretos para decorar.
Inúmeras plantas sedentas, como eu, para aguar.
Cômodos e armários para ordenar.
Uma banheira branca e cristais de banho só pra mim.
Novos barulhos e mistérios de uma casa inteira por descobrir.
Um resfriado intempestivo, daqueles que insistem em nos lembrar de todos os que amamos, pois só eles nos salvariam da certeza de que não encontraremos força para juntar o que sobrou do corpo.
Sono tranquilo e sem sobressaltos, pois sei que os ratos ficaram todos no porão abandonado.
Alarme da cozinha que não cessa de disparar, donde concluo que sou mesmo um perigo na cozinha. Na casa antiga, por falta de tão engenhoso instrumento que veio em socorro das mulheres modernas, a fumaça invadia todos os cômodos e me tomava de assalto em meio à página ou a uma cidade qualquer de um conto russo, antes que eu pudesse lembrar que estava a cozinhar algo para o pequeno almoço.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Apontamentos para uma biografia

           
 Jovem,  eu visitei cidades e aprendi a percorrê-las e percorrendo-as pude amar suas geografias.
           Adolescente,  deixei meus pais para  morar na cidade e demorei pra entender que um barulho de carro era um barulho de carro e não o anúncio de uma visita inesperada em meio às lides da vida no campo.
             Mas era infância quando:
            Tive minha confiança solapada pela primeira vez foi porque, a pretexto de me mostrar algo, meu irmão pediu que eu abrisse muito os olhos. Assim o fiz  e ele os encheu com quirera fresca, causando em mim imensa dor. A dor de  um amor traído.
            Eu me machucava e ouvia sempre a mesma frase: “Mas o que é que você foi fazer?” E isso fez influência em meu modo de entender  causa e efeito.
            Ganhei  uma irmã mais nova e eu  tinha certeza que ela brincava com minha coleção de latinhas Royal mesmo estando ainda na barriga de minha mãe.
            Eu  tinha só um vestido,  amarelo serpenteado de bolinha brancas. Minha mãe o lavava com zelo. Mas um dia ela o  estendeu  no varal e, com zelo,  a vaca o comeu.
            Eu ganhei meus primeiros sapatinhos vermelhos e um deles foi engolido pelo ralo do tanque logo na primeira lavada. A torrente de água fugidia  deixou-me só, como só, restou um sapatinho vermelho.

Das pequenas mortes


          Havia uma lei não escrita, mas imperialmente conhecida e aceita, que mulher pra poder casar havia que saber puxar orações, rezar o terço inteirinho, coser, bordar e engomar todo o enxoval, com tal zelo que os dotes pudessem ser mostradas a toda gente. Havia que saber olhar a lua e o tempo certo de atirar sementes à terra. Havia que saber de onde soprava o minuano e quando não era pra podar galho. Tinha que saber de guardar rama e grãos pro tempo de replantar. Também havia que ser prendada, e de tudo um pouco saber fazer. Era costume que da mãe se herdasse uma máquina de costura, fosse manual, de pedal ou ainda de pedal elétrico, mas isso foi bem mais tarde.
        No tempo em que Ela ganhou a primeira Boneca das mãos de sua Madrinha, já sabia que mulher tem uma coisa assim: sofre, angustia, chora, joga tudo fora, arruma o cabelo, passa um batom pink vermelho e sai para passear. E à medida que sai a cor do beiço, mais tarde corrói por dentro, nauseia.
         Aquela sua Madrinha trabalhava fora, era cheia de opiniões, enfrentava impavidamente o marido e, quando decidiram ir morar no centro do povoado, inaugurou sua chegada arremessando a frigideira pela janela do rancho em um ataque de gana pelos disparates do cabra. Tentava buscar saídas. Era, enfim, uma Madrinha e por isso Ela nunca se importou. Gostava daquela mulher em tudo o que pudesse ter de atípico. E a mesma comoção e sentimento que nutria por outros seres miúdos ou indefesos, a mesma vereda que enrubescia a alma quando alguém era humilhado, Ela experimentava por sua Madrinha.
        Ela queria se salvar como boneca precisa ser salva do esquecimento, das desilusões e vontades incautas. Talvez por isso Ela, quando foi morar à cidade grande, levou consigo a Boneca mesmo temendo que ao arrancá-la do lugar onde deram-se a conhecer fosse algo parecido com tirar de vez a própria alma do quintal onde nascera.
       Usava um tom assim. É provável que fosse verde com pequenas nuances circulares em branco, o cabelo esvoaçante mas ordenado, do modo como Ela quisera que lhe tivessem arrumado quando criança. Passados tantos anos e aquela Boneca agora ali, ora impunemente sentada na cabeceira, ora deitada ao chão, ora atirada sobre a cama, pondo uma e mil recordações, avassalando a mente. Quem a visse assim, de olhos tão abertos, com cílios bem definidos e a menina dos olhos a ditar o contorno, jamais poderia supor que fosse simplesmente uma, mas que para Ela.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Demudar

Mudar é sempre de
Uma urgência e
Decorrência de algum desejo
Assim perdido e
Resgatado pra ser vivido.
Eu sempre acho que algo
Ubíquo, como um desejo, devia
Ser bem entendido.
Em sendo assim, evitaríamos
Mudar, mudando sem ter motivo.
Prefiro é ir
Reinventando algum lugar desconhecido.
E que
Mistério,
Ultimamente, mudar tem sido de um
Devaneio tão visceral que até parece
Obsessivo.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Esboços de duas figuras por aí afora

           E por falar em não perder o juízo, Ele matutava coisas estranhas, parece que sonhava a realidade. Descobriram que Ela tinha completa aversão por naftalina e outros aromas assemelhados.
          Ele jamais se separara de seu isqueiro porque abominava caixas de fósforo, ou qualquer coisa que remetesse ao cheiro, aos restos. Quando, acidentalmente, encontrava uma fagulha ou palito, corria preciso, desinfetar as mãos com muita água corrente saída da bica, depois com álcool e por vezes repetia uma vez mais todo o processo.
           Cochichavam que Ela, esporadicamente, arrumava o velho baú. Tudo que trouxera quando chegara por aquelas cercanias. E, cautelosamente ordenava retalhos, fiapos e roupas antigas, estabelecendo uma classificação qualquer que hora era a cor, hora o equilíbrio do todo que determina o fim.
          Quanto a Ele, palpitavam que gostava de repetir adágios e com eles inventar histórias palavreadas de imagens fortes e nem sempre clarividentes.
           Impressionavam-se.
           Os que a conheciam também supunham a fascinação dela por galinhas, que em geral não costuma ser bicho de estimação. Só Ela distinguia  a meiguice das penas sobrepostas: nacaradas, avermelhadas, ocres, carijós, alvas, negras e quando achava uma ou outra perdida, podia dizer a qual parte do corpo pertencia, só pelo cheiro da dor.
          Nunca souberam se Ele tinha ou não dotes culinários, tampouco confirmaram seu pactos com o tinhoso, embora de sua chaminé sempre escorresse para o céu um miúdo fio de fumaça preguiçosa e sua aura causasse estranheza a olhares apressados.
         Ela gostava de apertar úbere de vaca e pronunciar a palavra urubu, assim u-ru-bu, pausada, laconicamente, e pensava como aquele Deus pudesse ter criado olho de gente, que é assim tão oblíquo, e um bicho que se prestasse a comer tudo o que os mais velhos nomeavam carniça.
        De uma feita, Ele queria construir um rancho no sopé da montanha, onde esta se dobrava e uns ariticum amarelavam em cada quaresma. Dizem que Ele chorava copiosamente quando. Viam-na chorar sim, mas de tristeza mesmo, solidão ou raiva. Coisas que Ele parecia não sentir.
           Houve um dia, Ele chegou da vila trazendo-lhe presentes e uma fabulosa máquina que diziam poder cantar bonitezas, mas uma parte dos presentes deixou no caminho, que a mula não venceu o eito. Ela nunca lamentou. De certo que não só a mula fosse dada à resignação.
            Ela ignorava a falta de bons modos com que Ele costumava portar-se quando estavam a sós, em andanças, mas ninguém supunha, posto que Ele era bem esperado em cada alambique da cercania.
            Vingou uma vez a lorota de que Ele se entregou à bebida, cansado que estava de macerar, picar, mascar e cuspir o rolo do fumo forte. Meteu medo em toda gente, seu braço e o tamanho da sua bainha. Um solteirão, que morava no borda do poente, teria avistado-o sacudindo os pelegos depois de levar a si a ao estimado asno por barrancos indesejados.
           Ela crescia, dissimulada e comedida, enfurnada em moldar quimeras.   
            Ele deixou de ser visto, uns diziam que havia caído em sono profundo e escondia-se dentro da própria casa, abandonando a cama só até alcançar o cabo do penico e umas miudezas quaisquer por alimento.
           As vizinhas, destilando inveja mordaz, costuravam horas e inventavam-lhe destinos obscuros e fantásticos acreditando que Ele fugira, cansado da solidão a dois e dos poucos dotes dos quais Ela se servia para agraciá-lo.
            Ela nunca gostou de ver bicho sofrer, porque era nela que doía. A dor de uma paulada certeira representava-lhe mais ameaça, mesmo que fosse para se defender de cobra venenosa, lagarto, ou impingir vontade à mula quando arar a terra ou conduzi-los ao bugre era questão. Nunca gostou que ralhassem com Ela, preferia calar ou falar muito.
            Gostavam era de ver cantar passarinho, mas com silenciosos berros Ela queria que Ele acudisse o destino.
            O silêncio era o arrimo de ambos.
            E Ele e Ela de repente achavam-se juntos sem que nem um, nem outro, tivesse que dizer: senta comigo.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A vida não chega

        Fernando Pessoa fingiu seus heterônimos para fazer caber em algum lugar aquilo que não lhe cabia mais em si.
       Clarice Lispector deu voz a seus personagens femininos para fazer todas as perguntas impossíveis de serem respondidas, mas indispensáveis para se viver uma vida.
       Luigi Pirandelo em “Um, Nenhum, Cem Mil” nos diz do quão intrigante são as percepções que os outros fazem de nós, como o são também as impressões e certezas que temos a nosso respeito, para por fim notar que nenhuma delas parece coincidir exatamente com o que somos.
       Julio Cortazar inventou seus “Cronópios e Famas” para fazer a alegoria dos tipos humanos e suas atitudes diante da vida.
       Ítalo Calvino desenhou “ As Cidades Invisíveis” pelas quais podemos viajar e sentir melhor esse lugar onde habitamos.
       Elias Canetti iluminou e absolveu sua biografia criando “A língua absolvida” e “Uma luz no meu ouvido”.
       Cada um escreve sobre o modo como olha pelo vão da vida. E a lista de exemplos termina infinita porque, como afirmou Fernando Pessoa, “A literatura é a melhor prova de que a vida não chega.”

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Aquele Pai

       Todo dia era assim. Acordava sem nenhuma cerimônia, dava passos largos que ressoavam pela casa de madeira, descia ao porão e fiava seu repertório de barulhos para avisar à dúzia de filhos que era hora de tomar o rumo do eito.
        Acendia o fogo no velho fogão de tijolos sem esforço de encaminhar a fumaça para a chaminé e logo cada aposento seria invadido pela fumaça ardida e pelos rompantes de urgência daquele Pai. Tinha vezes que o barulho da pesada chaleira de ferro triscando o fogão ou o da colher com açúcar girada dentro do bule de café enchiam a manhã com suas estridências.
       Quando lhe sobrava apetite, Ele enchia a chapa do fogão de pinhões e rompendo-lhes a casca com sucessivas batidas da madeira contra o metal convidava os filhos a estrear o novo dia. Se ainda assim algum rebento ousasse se prolongar na preguiça matinal, ele usaria sua força derradeira e com um grito ou dois, não mais, teria todos ao seu redor tomando o café e o rumo das previsíveis e alternáveis lides do campo.
       Todos a postos, Ele voltaria  pro leito e    remoeria a própria obscuridade. Não raro, depois de semanas embrenhado na penumbra do quarto para curar dores que não se faziam entender, Ele surgia em pé, no meio de uma hora. Munindo-se de pás, machado e picareta rumaria para o serviço mais bruto: abrir valetas, limpar o poço d’água, tirar um tronco fincado a terra e ali se deixaria ficar até cobrir-se de suor, terra, barro ou pó.
       Não parecia gostar das pequenas tarefas que lhe impunha a mulher, como amarrar vassoura e fazer cestos, mas quando esses utensílios estivem no oco ele os reporia com ares de desagrado e inaptidão.
       No domingo a bronca era outra: dar algum sentimento de fé aos filhos. Repetia a ladainha dos dias da semana acrescendo a urgência de terminarem o serviço de servir comida aos bichos, cedo, para depois irem à igreja, religiosamente, todo o santo domingo. Ele mesmo ia a Igreja quando em ocasião de um filho receber um sacramento.  
      De comprar e vender miúdos e de inventar caminhos Ele gostava e um ou outro desses ensinamentos cada filho tomou para si como pode.
      E hoje Aquele Pai poderia se reconhecer na dúzia de trilhas escolhida por seus tão distintos rebentos.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Autómaten

Que alimento coincidirá com essa fome?
Que pergunta moverá esse desejo?
Que cor alegrará esses olhos?
Que roupa traduzirá esse ânimo?
Que amigo acolherá esse riso?
Que noites engolirão essa ânsia?
Que lugar abrigará essa certeza?
Que amante escutará esse silêncio?
Que pássaros suplantarão esse grito?
Que autômato governaria a palavra?
Que serei eu?

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Como chama

Quando se come pipoca e aquela casquinha fica entre sua gengiva e seu dente?
Quando um cílio insiste em se aconchegar no seu olho?
Quando se confundem um restinho de unha, cutícula e pelezinha ali na volta do seu dedo?
Quando sua belezinha de nascença sente uma coceirinha?
Quando ao olhar amorosamente para o couro cabeludo se percebe que os fios crescem em linhas e direituras que não se supunha?
Quando, no instante do arrepio, sua pele faz montinhos de si mesma?
Quando o primeiro sangue inunda a ferida aberta?
Quando o resfriado começa e dói só uma beira da sua garganta?
Quando você não pode se ver se vendo no espelho?
Quando um sentimento é vago e preciso?

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Aquela Mãe, Aquela Filha

        Aquela Mãe e aquela Filha raramente passeavam a sós. Pouco ficavam juntas embora estivessem sempre lado a lado. Porque a Mãe tinha muitos filhos e afazeres. Porque a Filha entendeu que as tarefas da Mãe também eram suas e pôs-se a trabalho.
       Quando a Mãe contou que elas, só as duas, fariam uma viagem para visitar parentes, a Menina tomou aquele momento inaugural como a chance de ficar vadiando palavras e colos.
       Chegando à cidade, depois de abraços efusivos por saudades latentes, as duas mulheres, Irmã e Tia, saíram para passear e quem cuidou da Menina foi um completo estranho, tido por seu irmão. Tentaram brincar em uma escada cercada por paredes formando um corredor obscuro.
        Nessa primeira ausência da Mãe a Filha chorou intermitentemente.  Para a Filha criança as duas mulheres demoraram muito a voltar e  Ela precisava tanto que sua Mãe chegasse para ordenar-lhe o mundo.
        Quando enfim retornaram a primeira revelação à Filha, sobrinha, foi:
         - “A tia comprou-lhe uma boneca linda, diferente de todas as outras”. Conceito que a menina não poderia entender, pois que não tinha nenhuma. “Mas os lugares e passeios foram tantos e a excitação tamanha que a perdermos”.
         - “E não voltaram para procurar?”, replicou a Menina sofregamente.
         - “Até arriscamos... Mas e tanta rua? E toda gente?”
         De modo que a Menina sabe que um dia ganhou uma boneca sem nunca tê-la recebido. Tem esta certeza e outras poucas.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Larápios

       Eles vinham um a um. Eles vinham em bandos. Eles se serviam do grão recém-colhido, do alimento reservado para a entre safra, do queijo que curava à prateleira no frescor do porão, de restos. Eles deixavam seus rastros, seus odores e pêlos. Eles enchiam a noite com seus guinchos e chiados e corridinhas de corte à fêmea. Eles invadiam o paiol, a estrebaria, o chiqueiro e a casa com seus ares de urgência. Traziam ninhadas de filhotes tão frágeis que não guardavam sinal da sinistra criatura que os originara ou nas quais se transformariam em breve. Se perseguidos caberiam em qualquer vão. Se irados se embrenhariam em toda fresta. Se acuados investiriam contra qualquer matéria. Se amedrontados espalhariam sua urina ácida e inconfundível. Se famintos roeriam quaisquer corpos. Eram ratos, incontável número deles, que enchiam de horror e náusea aqueles tempos que os outros ousaram chamar de nossa infância.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Os seus outros

        Na casa deserta, pequenos ruídos ao longe. A torneira antiga pinga. O vento dá sacudidelas nas folhas do pé de boldo - que o tempo está indigesto. A cortina esvoaça. Os filhos dos outros a chorarem dores impronunciáveis. O casal do cômodo ao lado a emanar o líquido surdo de seus gozos.
        Jogada ao chão, a cabeça doendo, Ela respira superficialmente e, quando lembra, ouve os mesmos discos de há décadas. Fica existindo e envelhecendo, existindo e.
        Ela, que só sabe repousar em nostalgia, pergunta-se: onde estão todos? Escolheram seus caminhos e trilharam o rumo azul do infinito? Folgarão em outras quimeras?

domingo, 25 de outubro de 2009

Para encher um domingo

Quase uma dúzia de imagens colhidas ao caminhar pelo domingo:
Uma caixa de correio presa à porta do cemitério.
Uma árvore cor-de-rosa.
Um corvo à Edgar Alan Poe procurando restos.
Um ganso lustrando as penas azuis.
Um esqueleto dócil sorrindo à janela.
Um varal com desenhos infantis preenchendo a sala de estar.
Um gato preto guardando a casa vazia.
Dezenas de abóboras enfeitando uma árvore púrpura.
Um pescador com seu barco às costas.
As árvores em seus trajes de gala outonais desfilando em tapetes de folhas.

sábado, 24 de outubro de 2009

Mensagem para você

         O computador deu agora de achar que é gente. Acha-se no direito de interagir e reivindicar atenção. Uma besta achando-se capaz de pensamentos complexos e voluntários. Hoje, porque eu pressionava extensivamente um par de teclas qualquer, ele julgou por si próprio que eu estava querendo instalar algum tipo de ferramenta para pessoas inaptas em algum sentido. Que as máquinas se transformem e se prestem a tão nobres fins como o de facilitar a vida das pessoas com qualquer deficiência é coisa que eu julgo louvável. Agora essas mensagens não solicitadas me põem nervosa.
         Outro dia, ele insistia em me informar que tinha atualizações inadiáveis a executar a fim de continuar operando. Que eu interrompesse tudo o que estivesse a fazer, fechasse as variadas janelas e páginas nas quais navegava, porque ele tinha suas urgências. Ora essa! Quem essa máquina acha que pensa que é para se autorizar a julgar, melhor do que eu, o que seria prioritário no meu dia?
        E a lista segue, ele também concluiu que preciso ter contadas as palavras que digitei. Disparate. Deve ter desconfiado que eu agora escrevo para um blog e quer me induzir a poupar os leitores de passagens longas, não raro tidas como cansativas pelos navegantes mais modernosos.
        Mas não vou me render. Que venham acusações irônicas de que não estou habilitada para operá-lo. Que me ataquem vírus perigosíssimos. Que se cansem os leitores. Eu me nego a ser teleguiada pela máquina que ainda está aqui para me servir. Pelo menos por enquanto.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A dona da terra

       Chamavam-lhe a Dona da terra. Ela não era tudo isso. Só tinha sob seu domínio um exíguo pedaço de chão, mas dava-o por grande coisa. Ninguém entendia muito os seus modos, as suas cores. Ela sempre postergava a abertura da porta antes de deixar a visita entrar. Se sozinha em casa Ela falava muito. Dizia ter um marido, mas ele nunca fora visto. Ela preferia conviver com os ratos à deixa-los expostos aos perigos de armadilhas que poderiam conduzi-los à morte por inanição.
      Ela era meticulosa em separar os restos de comida que entregava aos bichos, mas não se poderia adivinhar ao certo o padrão de organização  que empregava dentro da própria casa. Dispersos pelo vão da entrada, sala, cozinha e quarto estavam pacotes de compras não guardadas, louça por lavar, roupas, café amanhecido, perucas, ovos, manuscritos, flores secas, um relógio de parede à Dalí, batom,  pijamas, livros, grampo de cabelo e máquinas para fins variados. Caso alguém passasse inesperadamente sob sua janela, Ela certamente apagaria a luz para não ser vista. Mas isso os outros demoraram para notar e associar às razões de fato.
       Ela recebia adjetivos vários.
       Os que ansiavam por seus conselhos tomavam-lhe por: - “direita.”
       Quando aparava arestas entre vizinhos em pé de guerra diziam-lhe: - “justa."
       Aconchegando os falíveis na fé era a: - “crente fervorosa.”
       Se queriam colher frutas de seu pomar sorriam-lhe um: -“generosa.”
       Se careciam de sua ajuda diziam-lhe: -“gentil e pronta”.
       Se o que queriam era algum dinheiro emprestado floreavam dando-a por: - “de um coração sem paralelo.”
      Se era para arrendar um pedaço de sua terra gritavam: -“preço exorbitante, ladra.”
      Se Ela solicitava algo que lhe haviam tomado emprestado, arremessavam: - “egoísta de uma figa, sovina.”
      Se cobiçavam seus favores, galanteadoramente forçam um: -“bem dotada.”
       Quando cedia aos prazeres da carne, taxavam-lhe: -“safada.”
       Se não servia aos pedidos menos castos dos machos sedentos, atiravam-lhe um: “vaca.”
       A despeito de seus zelos, aconteceu certa feita de um vizinho vê-la na intimidade solitária da casa.
       - “Não, não poderia ser a mesma mulher de à luz do dia!”, pensou ele. Ela tinha uma fúria nos modos. Ares vampirescos. Sua cabeça era nua exceto por um ou outro montículo de cabelo longuíssimo em desalinho. Parecia velha como se já vivera em muitos mundos.
       Para salvar o vizinho, imobilizado em tremores e olhares invasivos, apagou a luz e deixou que ele seguisse. Ela restou sozinha na casa amornando ovos para o jantar. Desfaria o fogo antes que perdessem o visgo e beberia uma dúzia deles naquela noite.
        À espera do próximo adjetivo, ligou o rádio bem alto no seu folk predileto e, dançando em meio às luzes soturnas, adormeceu.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Em estado

        Quando em estado natural Ela gosta de contar estrelas e perder-se fazendo isso. Tenta delimitar algum espaço na imensidão brilhante e formar figuras ou escolher um relevo luminoso e traçar um caminho.
      Quando em estado descomedido Ela gosta de colecionar momentaneamente um punhado de sementes e depois jogá-las ao léu. Gosta de carregar pequenos caules de flores de um lado a outro. Gosta de romper vagem e ver as sementes pularem loucas e de algum modo quer segurar todas e, sabendo da impossibilidade, deixa-se estar nesse momento.
       Quando em estado de criança Ela teria dito: “Mãe, eu gosto de brincar comigo; eu me dou tão bem comigo.” E a mãe riu com desdém desavisado, intuindo que aquela era uma centelha isolacionista que viera para ficar.
      Quando em estado vacilante Ela trava batalhas a cada dia ou sentimento estranho que se aproxima e ambiciona ser salvo. Ela então quer ser alegre, é triste. Quer migalhas de bom humor, mas bebe da própria bílis.
       Quando em estado bruto Ela é capaz de achar bonita uma caixa de cimento fresco sob à luz da manhã.
        Ela quer aprender viver destas coisas que não sabe dizer.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

As janelas

      Do alto da minha janela avisto as figuras do sem fim. Da janela há quem se ponha a espreitar os vizinhos ou simplesmente deixe-se e coloque-se a ver a vida passar entrecortada. Do vão da janela derrubam-se coisas, às vezes salvas por um fio  agudo e fino de vida que escorre. Da janela também se lança o suicida, no impulso de enfim agir e poder viver na sua escolha. As janelas nos salvam do desvario ou nos arremessam nele. Eu sempre consulto as janelas e tento adivinhar a cor do dia. Mas quase nunca acerto.
      A vida é um vão.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

A moça séria

        A moça séria espreitava os bolsos do dia, e perguntava-se: onde o inusitado? À vidraça, espiava lagartixas imóveis e pequenos colibris que degustavam aromas. Compunha-se em delirantes palavras. Perdia-se em divagações anímicas para reencontrar-se em outras plagas, enfrentando a própria obscuridade. Lutava guerras inexistentes e, exaurida, aguardava a noite chegar, sonhando percorrer outras searas.
       Quando a aura da manhã penetrava o quarto lúgubre, acordava com os pés no abismo e, não sem grande esforço, desfazia-se das vestes noturnas e da ânsia de viver. Deixava-se existir em pequenos prazeres e ardentes tremores nos mistérios diários.
       Naquela manhã a poeira espessa sobre a janela tornava a luz ainda mais surda. A moça, que ainda não sabia se acordara para viver a dor daquele dia, bruscamente levantou-se. De soslaio, viu Mistérios, de Ligia Fagundes Teles, ao pé da alcova. Olhou candidamente para os sinais negros desenhados sobre a folha amarelada, outrora cor de neve. Abriu o livro, percorrendo cada página com a delicadeza de pétala que lhe era inerente. Leu, com cabuloso espanto, o conto em que as formigas eram interrompidas em seus afazeres: estavam a remontar o alvo esqueleto anão escondido sob a cama antiga, deitada ao sótão do casebre decadente e belo.
          O pavor experimentado pelas formigas e personagens, mal sabia a moça, também lhe espiava. Terminado o conto, fechou o livro, agarrou-se a cama e por entre seus lençóis irrompeu uma minúscula criaturinha negra. Desconfiada, a moça encarou-a, lembrando-se do amargor que lhe causara a infância quando desavisadamente degustava formigas e outras espécies de miudezas.
         Mirando a insuspeita formiga que folgava em quimeras alheias, acariciou-a acolhendo seu pedido de salvação e desejando que desaparecesse.
         A criaturinha deu cabo de si mesma e nunca mais foi vista. Quanto à moça, dizem, depois dessa feita, vive a espreitar a fina luz da aurora a perguntar-se se um dia elas virão em bandos e ordenarão seus ossos em meio ao torpor matinal.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Abusada, eu profanarei

         De tempos em tempos abuso de palavras. Eu odeio abusar de certar palavras. Tão logo me apercebo violando palavras, já não quero mais usá-las. Porque aí elas já viraram minhas muletas e palavra nenhuma é vil a ponto de sofrer tão malfadado fim.
      Estranhamente eu acho justo e divertido que alguém repita insistentemente uma gíria. Talvez porque às vezes há palavra que não me larga, forçando-me a escolhê-la.
         Mas, pretensiosamente almejo pronunciar um dia: Eu profanei a língua! Um dia eu hei de capturar a língua aí, em seu estado virginal, descarnado, qual corpo aberto e ferida exposta. E então, vou deitar e rolar sobre as palavras e corpos. Pedalarei máquinas de coser palavras e bordarei tecidos novos, e figurarei babados intransigentes, e abortarei palavras empregadas toscamente e gozarei em cada célula de palavra recém-nascida.
         Eu profanarei. E a isso hei de chamar o meu avesso, a minha prosa, o meu verso.

domingo, 18 de outubro de 2009

O fato domingueiro

        Há gentes que nem trajando o fato domingueiro, como se chama em Portugal a roupa mais formal ou a reservada para ocasiões especiais, consegue fazer um domingo. Talvez seja justamente porque para se viver um domingo, como para se viver uma vida, não se pode estar emproado em repertórios fixos e aparências vãs. Para merecer um domingo, há que se desejá-lo. Mas como é difícil saber o que, de fato, se deseja.
       Lá vou eu inventar meu domingo. E vocês?

sábado, 17 de outubro de 2009

Todos os caminhos levam à Roma

         Quer bicho mais capcioso que formiga? Elas simplesmente desconsideram a gravidade, a elegância e os bons costumes. E quando menos se espera, lá estão elas dentro das gavetas e armários, lambendo seu pote de mel, enfiando-se em qualquer fresta, ignorando qualquer etiqueta, dispensando qualquer convite e adentrando o menor dos recintos.
          Tentei ser ácida: dei-lhes limão, vinagre.
          Tentei ser aromática: tratei-as com canela em rama, noz-moscada, cravos-da-índia.
         Tentei ser nobre e respeitosa: ofereci-lhes folhas de louro.
         Tentei ser diplomática e burocrata: rejeitaram meus pedidos de que deixassem o recinto e afrontaram minhas ordens de despejos.
         Tentei ser persistentemente maligna, esganando-as uma a uma ou macerando-as aos bandos, enxotando-as da minha cozinha, varrendo-as para fora do meu terreiro, condenando-as deliberadamente aos piores castigos, como morrerem escaldadas.
        Arrependida, abandonei a truculência e dei-me por vencida. Qual o que? Querem ficar por aqui? Agora emprego métodos mui amenos e, mesmo sem discutir a relação, seguimos juntas.
      A receita? Simples. Alimento-as periodicamente com os melhores açúcares. Parcimoniosamente deixo-lhes bom punhado de grãos finos na borda do vão, entre o piso e parede, que conduz ao formigueiro. Elas os perscrutam com as minúcias usuais e põem-se a carregá-los para dentro de seus labirintos inalcançáveis.
      Sigo minha vidinha e elas seguem a delas.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Professores, Moinhos e Gigantes

      Moinhos podem ser os da minha infância, movidos a água, feitos de pedras, encobertos de pó e restos. Eram máquinas de operar milagres e transformar grãos em farinha, folhas em erva-mate, grãos brutos em grãos descascados.
      Em outras plagas aprendi sobre os Moinhos de vento, grandiloqüentes e velozes.
      Ney Matogrosso canta lindamente “Os ventos Norte não movem moinhos”, pondo-me a pensar quais esforços merecem ser feitos, quais resultam em fins inesperados e quantas podem ser as variáveis de um mesmo vento.
      Rendeu em meu eito a mirabolante imaginação de Cervantes. Os moinhos que Dom Quixote vê são para mim os mais belos, porque inventados.
      Conversando com a obra de Cervantes, António Gedeão escreve o poema “Impressão Digital” e parafraseando digo: se quisermos ver gigantes serão gigantes, se quisermos ver moinhos, serão moinhos. Porque a vida também depende de nossa imaginação.
      Para completar o repertório de estesias, como esquecer os Moinhos saídos de Rembrandt?
      Comemorou-se ontem o dia do Professor no Brasil. Como acredito que certas belezas estão aí para serem celebradas todos os dias quero desejar que todos nós, professores, possamos ensinar nossos alunos e parceiros aprendizes a enxergar moinhos e gigantes.
      E longa vida aos que aram nessa seara e são, simultaneamente, professores, moinhos e gigantes.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

“Provavelmente, a vida é redonda.”

          Foi com essa intrigante declaração de Van Gogh que me deparei dias atrás quando lia A Poética do Espaço, de Bachelar. E ela me fez recordar meus primeiro anos na Escola Básica Volta Redonda. Esse nome me parecia uma redundância. Sim, se era uma escola, deveria ser basilar, fundante, como devem ser tais instituições. Agora como uma volta poderia não ser redonda? Seria então elíptica? Esta última  foi uma pergunta que eu não me fiz, nem meus professores me encorajaram a fazer naqueles anos e que meus parcos conhecimentos de Física não me permitiram responder. Tanto melhor! Fiquei para sempre intrigada com a história da volta redonda e agora Van Gogh me responde: “Provavelmente, a vida é redonda.” E isso me basta para seguir perguntando: que raios querem dizer com isso?

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Compaixão e penas nacaradas


         Em fins de setembro estiveram reunidos em Vancouver os laureados com o Nobel da Paz: Betty Williams e Mairead Maguire (que partilharam o Prêmio Nobel em 1976), Dalai Lama (Prêmio Nobel em 1989), representando Desmond Tutu (Prêmio Nobel em 1984) estava sua filha Rev. Mpho Tutu- e Jody Williams (Prêmio Nobel em 1997).
         O encontro, chamado Connections for Peace (Conecções pela Paz), tinha como tema a compaixão. Assim resumo simploriamente as declarações: A compaixão implica uma tomada de ação e dista do sentimentalismo. Se nos solidarizamos com a condição do outro então podemos agir em prol de uma causa, que acabará sendo maior que um ser humano ou comunidade. Uma causa que é de todos nós.
         E recentemente deu, não no New York Times como cantava Tim Maia, mas, no Vancouver Sun, que empatia pelas outras formas de vida é algo que nós adultos devemos ensinar cotidianamente às crianças. Longe de esperar que elas espontaneamente respeitem e amem os animais, plantas, fenômenos da Natureza ou outros seres humanos, devemos sim, estimulá-las a descobri-los, cativá-las a conhecer suas manifestações peculiares reconhecendo-as como parte de nossa existência e condição humana. Afinal sem qualquer uma das outras formas de vida sairíamos, como temos saído, um pouco mais empobrecidos.
           Felizmente, quando criança, eu me formei em apreço pelos animais. E, por paradoxal que possa parecer, apesar de vê-los servirem-nos de alimento, sempre prevaleceu em mim a lição de meus pais: um animal deve ser respeitado, cuidado, zelado. Por isso compaixão tem, para mim, a beleza das penas nacaradas. E por isso faz todo sentido, para mim, que ensinemos, e logo, nossas crianças a respeitarem outros seres, especialmente os humanos, que andam tão precisados de o serem.
         E um ótimo dia da Criança para todos nós!

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Onde uma crença?

       -  Sua religião?
      Há anos que lhe fazem esta pergunta e Ela emudece. Falta-lhe o que dizer como faltam aromas ao café amanhecido. Responde com volteios e meias palavras que caem da boca. Em casa, no clarão do dia ou em horas madrugueiras, acende suas velas, fia-se na existência de um ser superior ao qual, desde priscas eras, servimos de ventríloquos todos nós. Mirando a espada de São Jorge, exorciza vodus, banha-se em sal grosso, reza o padre-nosso, medita qual zen-budista, respira à maneira iogue e adormece o sono justo dos pecadores.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Da vez primeira em que me reconheci

        Sozinha em casa, meu corpo era uma ferida aberta. Eu costumava fazer diligências e buscar possíveis segredos de família que poderiam me ser escondidos. Afinal, eu supunha, toda família tem cavernas recobertas de teias obscuras. Depois fiquei sabendo que uma família pode ser uma fruta podre, mas sempre é bonita de algum modo. Nutria um sentimento que encontraria um espaço ou coisa inominável, desconhecida. Inexplicavelmente, meu nariz sangrava. Quando senti o líquido quente molhando a face, invadindo a boca e entalando a garganta; eu não sabia. Corri para o espelho, raro na casa. Jamais esqueci o gosto morno da solidão e da cor decomposta pela água. E eu ria um riso bobo e certeiro, pusilânime, avassalador, triste. Eu era aquela imagem. Completamente entregue a mim mesma e achando graça de existir tão independentemente dos outros. Isso já faz muito tempo e esta foi a primeira vez que me lembro de ter pensado o inexistente. Enquanto ria, pronunciava meu nome e isso me fazia mais cócegas e revigorava. Queria parar o riso e me reconhecer naquela centelha espirrada, soprada, pulsante, mutante, correndo, vermelha. Mas não deu.

domingo, 11 de outubro de 2009

Almoço de domingo

         Para Ela domingo sempre foi nostálgico. Para Ele nada era necessário e tudo desprezível: o riso, o choro, o luxo, o gozo, o perfume, o batom, as folgas. Só andanças solitárias, costumeiramente feitas por carreiros e por dentro de sangas saltando por entre pedras e poças d´água, ouvir causos de bêbados, fazer briques de bois e longas conversas com bugres enquanto amarravam cestos, mascavam fumo, tragavam cachaça do alambique e cuspiam no chão, enchiam-lhe a existência.
          Naquele domingo, Ela preparou a comida e com deleite Ele se fartou. Para entorpecer o dia, e sem outro motivo, e sem mais motivo, o homem buscou vinho de seu porão. Bebeu, avermelhou. Depois do vinho, pegou o machado e encarou a árvore imponente, antiga, ali na borda da bica d´água e disse:
         - Vou deitá-la ao chão.
         - Mas por que homem de Deus? Estremeceu a mulher.
         Ele não disse palavra. Ela chorou até, disfarçou, fingiu beber água. Mas o que não se pronuncia é sempre maior. A duros golpes o homem abriu uma fenda na terra e logo depois na raiz grossa. Exauriu-se. O gume afiado era em si próprio que cortava. Exauriram-se todos. A árvore resistiu lacrimejando resina ocre avermelhada. Nos três a esfoladura. A causa pode ser diferente, mas a dor é igual; ou a dor é diferente e a causa igual.
         Ele guardou o machado no porão e deitou-se sob a árvore. Ela se penteou e saiu para passear.
          Nunca mais falaram no assunto.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Cana-de-açúcar e eu

          A cana-de-açúcar tinha um não sei o que de mistério aos meus olhos infantis. Recolhíamos e replantávamos suas mudas em vez de suas sementes. Suas folhas cortantes protegiam colmos doces. Entre um colmo e outro havia um nó, rígido e pouco palatável. Depois de mascada ou espremida no engenho resultava em bagaço, dono de uma textura que não parecia estar contida na cana antes rija por cheia de sumo. O bagaço podia alimentar o gado ou servir de cama e cobertor para o terreno berço da própria cana.
          Acho que a vida da cana-de-açúcar fez morada em mim. Minhas vontades são folhas ásperas e perturbadoramente cortantes. Tenho felicidades tão curtas quanto um colmo. Entre uma felicidade e outra sou nó que não desata. Em estado de bagaço ainda absorvo mil sentimentos alheios. Pereço. Sirvo de alimento a mim mesma e estarei doce no próximo inverno.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O passaporte universal

       Eu comecei a ir à escola antes e depois do tempo. Eu fui para escola fora do tempo. Até hoje ir à escola é para mim algo sem idade. Tenho sempre as mesmas ganas de aprender, perco o sono ideando o que vai acontecer na aula do dia seguinte e conferindo obsessivamente as horas para não me atrasar. Escola e eu temos uma relação que foge ao tempo convencionado.
      Quando comecei ir à escola, meus irmãos fizeram influência em mim. Eu sonhava crescer rápido para ter a famigerada idade de ser admitida à escola, de ser um grande que iria à escola.
        Houve um dia em que minha mãe se convenceu de que não, eu não caberia mais em mim sem o tempo escolar. Fosse qual fosse a estação.
        Mesmo tendo começado a ir à escola com o pretexto de acompanhar uma de minhas irmãs mais velhas, e, lá, recebendo o intrigante rótulo de aluna “encostada” por não ter idade para ser matriculada regularmente, encarei tal status como mérito meu. Jamais me permitia ficar à toa e preenchia páginas e páginas de exercícios de treino, tão mecânicos quanto adoráveis, com força o bastante para o peso da mão ser notado da primeira à última página do caderno quadriculado.
        Para chegar à escola, atravessávamos campos e plantações. Andávamos um caminho montanhoso e interminável para meus poucos anos e forças. Quando eu era vencida pelo cansaço, minha irmã prometia carregar-me nas costas tão logo chegássemos em cima do próximo morro. Tropegamente, eu seguia. No topo de outro morro conquistado eu queria mais era descê-lo correndo. O vento em mim e eu ao vento. Então ela prometia carregar-me no Morro do Modesto. Mas este era tão perto de nosso destino, e minhas ânsias já eram tão aumentadas com a proximidade da escola, que eu terminava dispensando a oferta. Outras tantas vezes ela me ajudaria em morros que eu não saberia nomear.
        Ao sol escaldante, sob chuvas torrenciais, pisando o barro vermelho ou estalando geada, eu ia à escola como quem ganhou o passaporte universal.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Um grão

Era um longo caminho entre a Semente e a tulha, entre a tulha e o prato.

Primeiro era arar a terra, o que, naquele tempo, fazia-se com arado puxado pelo Boi e conduzido pelo Homem. Depois o Homem e a Mulher plantavam o Grão. Esperavam longo tempo entre brotar a semente, crescerem as folhas, verem surgir um pé de milho com a espiga, o pendão. Quando era palha seca o milho podia ser colhido sob um sol pálido no inverno geado.

Depois era a colheita. E requeria que o Homem e a Mulher separassem pendões e espigas, reunindo-as no monte. Daí elas seriam recolhidas ao cesto pelo Homem, a Mulher e a Criança. Do cesto eram lançadas à carroça e, finalmente, levadas ao paiol. No paiol as espigas eram classificadas, destinando o melhor Grão para ser Semente no próximo plantio e para a alimentação. O restolho preenchia o Animal.

Para debulhar o milho, o Homem, a Mulher e a Criança usavam parte de suas horas noturnas, após àquelas dispensadas ao campo. Debulhado o milho, os grãos seguiam para a tulha e, ensacados, podiam ir ao moinho, suportado pelo Homem ou pelo Animal.

De volta à Casa o milho seria recebido por olhos gulosos, bocas cheias de apetites, corpos extenuados. Seria cozido pela Mulher em fogo brando e caldeirão de ferro. Retirado do fogo, esfriaria tanto quanto a paciência da ânsia resistisse. Então seria talhado a barbante e repousaria na boca do prato, na fome do Homem, da Mulher e da Criança.

Entre o bagaço  no campo, entre os vãos da tulha, entre as pedras do moinho, ficavam restos do Milho. Espigas perdidas, Grãos abandonados, Farinha cobiçada, Pó fugidio, que alimentavam o Homem, a Mulher e a Criança.

Assim era no Tempo do Antigamente.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Porque a vida é um vão!

entre o pingo e a gota,
entre uma letra e outra,
entre nota e sinfonia,
entre texto e melodia,
entre o fio e a meada,
entre a porta e a entrada,
entre o cão e sua pluma,
entre linha, ponto, agulha,
entre o pó e a poeira,
entre o sangue e a veia,
entre o parto e o umbigo,
entre a dor e o alívio,
entre sonho e pesadelo,
entre a pele e o pêlo,
entre unha e cutícula,
entre irmão, parente e filho,
entre línguas, lábios, dentes,
entre um sexo e outro,
entre desejo e vontade,
entre fruta e caroço,
entre incisivos e caninos,
entre ovo e formiga,
entre o grão e a espiga,
entre a tulha e o moinho,
há um vão.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Estações e sentimentos

É verão e os lagartos bebem ovos depois do banho de sol. Estou imóvel. Derreto. Dissolvo imobilidade e frenesi no intervalo de um bote.

É outono e em terras canadenses as árvores têm mil cores. Posso repaginar meus anos de escola rural e esquecer a maniqueísta professorinha inconformada com minhas folhas que não eram verdes e minhas flores azuis.

É inverno e eu nunca gostei de chupar bala. Gosto do gosto ácido. Diferentemente dos ursos que após longa hibernação purgam-se comendo folhagem amarga, eu já tenho em mim mil folhas azedas que me bastam para tantas quantas forem minhas hibernações.

É primavera. Sou promessa, vida e morte em uma única flor de cerejeira.

Começar um blog

Meu post de estréia!
Cá estou correndo o risco de tentar uma tarefa totalmente nova para mim! Estou curiosíssima!?! Por ora quero dizer que este blog materializou-se graças a alguns desejos antigos, aqui traduzidos nesta “Lista de Coisas que eu Faria":
Eu montaria um blog.

Eu seria escritora.
Eu seria magra e comeria sobremesa.
Eu faria exercício, mas só aqueles que gosto. Hum? (mesmo nas aulas de yoga, única atividade física a qual já aderi).
Eu teria um filho.
Eu queria me apaixonar várias vezes ao dia.
Eu visitaria a África.
Eu iria ao museu diariamente e estudaria arte a ponto de poder falar disso com propriedade.

Eu não mais me boicotaria.
Eu não mais me sentiria estranha quando estou ao vivo com as pessoas que amo ou não.
Eu seria fotógrafa do acaso.
Eu não mataria aranhas se elas se conformassem em viver do lado de fora de casa.
Eu alimentaria formigas eternamente.