sexta-feira, 14 de março de 2014

Arqueologia urbana

         Ele sonhava em fazer de seus achados um roteiro. Tal qual um mapa com o qual se pudesse operar cidades. Uma vez, achou, em bairro que pouco distava do centro, um ninho de passarinho  avassalado de intempérie. Deu nisso. Pôs-se a esquadrinhar não só pássaro fêmea  de  olhar perscrutador sob o ninho arremetido ao chão, mas os hábitos  vizinhos. Onde eles? 
          Fios coloridos de outrora engrenagens cibernéticas, parte do que fora pompom de roupa de criança, cabelos e pelos de animais variados, díspares galhinhos, um anel plástico  que selara a cachaça mais barata,   gripa e palhinhas da estação passada,  rotas folhas, impressos  arruinados pela inclemência de tempos urgentes, paina amarfanhada  e outros restos menos prováveis se juntavam. Isso, mais  penugens arrancadas ao dono, compunha o intricado berço agora coroado de vazio.
        Ao largo,  buzina de carro,  ônibus freando para passar  lombada,  canos de escapes rotos,  estridências, conversas cruzadas; a  cunhada, a cunhada da esposa, a vó, a  bisa, o pai, o filho. Ruídos de família.  O menino, recém-saído da fralda, rodeava-o, convencendo-o de que, sob a réstia de luz, valia a pena plantar grãos de milho num canto secundário do terreno financiado. 
          Ele ali,  vizinho,vizinhos, um olho no ninho, outro no filho com a mão esbugalhando semente.  Dentro, fora, o  sagaz silêncio.

quinta-feira, 13 de março de 2014

A maioridade

Vinte e um anos morando na cidade grande e  parcas habilidades  ainda de  transitar entre os citadinos.  Todo dia era isso, ele acordava, uma  ideia renitente  comprimindo o peito: “E se não passar de hoje?  E se  descobrirem a grande farsa que em mim se assenta?”
 Ele não era dali, ele nunca poderia  saber o que era ter nascido  e erigido, aí, seu castelo de conveniências. Por isso ele gostava de trabalhos impossíveis. De preferência encomendados, daqueles brabos, com data e hora para finalizar.
Não era a sua praia, nunca seria, mas às vezes achava que deveria estar  em uma agência de publicidade. - “Não é isso que dizem? Que marqueteiro tem deadline? Meia noite e... o último expiro!  E o glamour da publicidade? Ela que  se confunde com o nobre pressuposto de comunicar? Arras! Qual o que?”  
Só ideias. Isso. Ele era isso, só ideia. Nenhuma  mulher, algum emprego,  contas no escaninho da portaria do prédio, poucos amigos e um  ermo de sentimento. 
 Mas uma coisa era certa, todo dia, às 6:45, ele haveria de estar lá, na praça Rui Barbosa, exibindo musculatura e parcimônia  em exercícios  orientais. “Aqueles,  sabe? Aqueles que formam desenhos no ar.” 
 Ele  não supõe, mas sua disciplina chinesa,  em movimentos sincopados, braço direito  encontrando no ar a mão esquerda,  e o reverso,  braços e pernas abertos - da visão do homem vitruviano à simetria do universo... Ele  não saberá, mas seus fugazes  desenhos chineses  iludem  a moça triste que passa e, desavisadamente,  esquece de avançar no sinal verde, capturada pela ideia que,  ela imagina, deve acometer o talvez estrangeiro: “Cada um é cada um. Um dia ainda encontro a justa medida! Aí então serei tal qual um citadino.”