domingo, 6 de junho de 2010

A Velha da Curva

        Moravam numa beira de terra, exatamente onde a estrada batida fazia uma curva e encontrava-se com outro carreiro, de modo a formar uma encruzilhada. Encruzilhada, naquela terra de crentes, era ideia maculada pelo peso do destino, do incerto. Não podia ser bom.
        Ali, num eito sem dono, que lhe fora cedido para espiar culpas de riqueza e terras em demasia, moravam as duas. Da menina sabíamos ao menos o nome. Da mãe só conhecíamos os modos e os trajes repetidos. A boca sem dentes, o cabelo em desalinho, a vassoura em punho, as roupas cerzidas a mão, com ares de resto, fazia com que lhe vestíssemos mil caricaturas.     
       As habitantes daquele casebre visitado por parcas almas e raios de luz eram, para nós, a máscara perfeita do horror. O território desabitado da criança acaba preenchido com explicações fantasiosas que inventa. E a mulher facilmente ficou sendo a Velha da Curva.
       Tinha, nos limites do casebre, um enorme pé de castanheira, cujos frutos nós cobiçávamos avidamente, ano a ano. Para catar os bagos deixávamos momentaneamente de recear. Transfigurado o medo, catávamos tantos quantos podíamos. Ela nunca ralhou. Nem quando ao arremessarmos pedras à árvore estas caiam-lhe sobre o teto. Parecia acostumada àquela vida.
       À escola, Madalena era quase invisível. Só não era quando chegasse a hora de tripudiá-la. Nem quando Madalena se enchera de piolhos puseram-na em sossego. Encontraram-lhe o couro cabeludo em carne viva e ali a incapacidade de aprender. Anunciaram seu infortúnio, já iniciado em malsucedidos anos escolares.
         Um dia, quando estávamos  uma vez mais a caminho da escola, caía  chuva densa e a Velha nos convidou ao casebre. Ficamos tomados de horror e surpresa. Éramos seus convidados. Seu chão batido era limpo. No caldeirão suspenso sobre o fogo de chão, fervia qualquer comida. Ela estava acima de nossas suspeitas e tirania infantis.   Diante da inesperada visita, Madalena desenhava-se, furtivamente, tal qual uma menina, como nós. E a imagem logo esmaecia.
        A Velha da Curva, nunca abandonara sua casa. Naquele dia, girando a língua na boca banguela, ensinara-me o que Saramago ensinou-me hoje: “Para conhecer uma coisa é preciso dar-lhe a volta toda”.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Como comer fruta ou como medir o tempo

         Eu não sei comer um fruto só.  Gosto de comê-los por gênero e, se inicio, como vários. Em tempos de eu criança, conforme a estação, teríamos um ou outro fruto à exaustão. Quando acabavam, restava esperar que ano virasse e o ciclo se repetisse, vagarosa e sobressaltadamente, para tê-los em mãos outra vez.
        Alimentava-me de esperar que os frutos crescessem e mesmo tendo certeza de que ali não estivessem eu gostava de visitar os vários pomares que se espalhavam nos arredores de casa.
        Assim eu podia adivinhar flores nascendo, virando um grão de fruto ou fruto ganhando porte. Nunca me furtei a prová-los azedos ainda. Com avidez e sacrifício eu aguardava a chegada da suprema felicidade: o momento perfeito de devorá-los. Quando os passarinhos começassem a bicá-los os vazios seriam mais azuis, a existência mais tenra e as tardes  não doeriam.
         Aquela vida dispensava relógios.