segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Açúcar bruto

           Nenhum doce é o bastante para apagar o fel que se espalhou. Careço de açúcar, uma urgência que nenhum tacho de melado, marmelada ou açúcar mascavo cozidos durante os invernos de eu criança foi capaz de desfazer.
          Vivi a honradez de ver nascer canas-de-açúcar, cortá-las, pilá-las, tomar-lhes as folhas e aprontá-las para o engenho, onde lhe sacaríamos o sumo que seria levado ao tacho. Esse saber-fazer impregnou-se em mim e eu tendo a acreditar que culinária é prima da bruxaria. Assunto sobre o qual pretendo escrever qualquer dia.
          Mas a vida no campo era distante da vida na cidade e o açúcar refinado era raro em nossa casa, reservado para alimentar o bebê ou compor os doces mais seletos. Não, aqueles ainda não eram anos de comercializar informações sobre dietas naturais e lá pouca informação chegava sobre o valor do que produzíamos. De modo que sim, eu já vira açúcar cristal, mas demorei pra notar que o açúcar bruto que fazíamos guardava em si a mesma origem do açúcar cristal, tampouco especulava sobre o que era um cristal.
           Entretanto, eu ia à escola e conduzi meu primeiro caderno à classe dentro de um saco vazio de açúcar cristal. Lembro-me, como se fora hoje, a transparência do plástico omitida pelo azul das letras grandes da marca CRISTAL, seu tamanho em relação a meu pequeno caderno e lápis. Era uma embalagem de 5 kg e, coincidência ou não, lembro-me perfeitamente da primeira lição que a professora anotou em meu caderno: preencher a primeira folha com o traçado do número 5. E fico até entendendo aqueles que gastam pequenas fortunas por uma embalagem antiga: eu adoraria ter alguma memória material daqueles anos.
           Naquele tempo eu me formava de brisa do campo, de uma alegria infantil por trançar folhas e galhos sob a sombra do mandiocal, do canto dos pássaros com quem eu dividia as melhores frutas da estação encontradas nos vãos altos das árvores e suas copas, de fazer de conta que montículos irregulares de açúcar mascavo eram balas, de esperar o regresso de meus irmãos, que iam à escola, à roça, à vida, para juntos enchermos as noites com as melhores conversar e jogos de adivinhar palavras.
           Será isso que Gabriel Garcia Márquez chama de nostalgia da nostalgia?

 

Um comentário:

Deisily de Quadros disse...

Que lindas memórias, Silvia. E doces...