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segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A cidade nem liga

        Chove, inunda, constrói, desfaz, pinta, pixa, suja, limpa. A cidade nem liga.
        Transeuntes chegam e partem e enchem-lhe os vãos. A cidade nem liga.
        Mesmo em dias em que vivemos de sensações difusas, e quando a cidade ela própria se mostra diversa, constata-se.
        De volta à cidade, o forasteiro que estivera ausente pressente o inquérito:
        “É bom voltar?” Pergunta-lhe o curioso.
         “Nada como voltar!” Impõe-lhe o mais taxativo.
         “De volta à vida real...” Insinua outro, a espicaçar-lhe a memória.
       E assim, de frases prontas e cheias de efeito e de encontros inesperados, se vai fazendo a volta do andarilho sobre a terra.
       A cidade nem liga.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Pirripirri Galinha Manquirri

       Eu tive pelo menos algumas centenas de bichos de estimação. Porque enquanto eu crescia, vivendo numa fazenda, todos os bichos que tínhamos eram meus bichos de estimação.
       Depois, quando fui morar à cidade, é que aprendi o dizer de bicho de estimação, coisa que me intrigou da vez primeira e continua. Porque bicho na cidade é diferente de bicho no campo. Os bichos no campo gozam de muito espaço, tem obrigações estabelecidas e ocupam um status específico na hierarquia do labor e prazer.
       Com exceção de um par de galinhas de angola, nenhum outro animal da minha infância tinha esses ares de ali estarem para embelezarem o terreiro ou simplesmente encherem nossas vidas com seus modos e trejeitos, quase sempre um misto de calmaria e rompantes efusivos de alegria animal. Em verdade eles eram muito mais do que isso.
        Além dos papeis esperados de um bicho de estimação, os animais de minha infância aravam, puxavam, rompiam, moviam, tracionavam, saltavam obstáculos, venciam distancias, transportavam-nos, protegiam-nos, livravam-nos de pragas, alimentavam-nos e enchiam as nossas vidas. Eles eram zelados, alimentados, acariciados e estimados por nós. Nutríamos por eles um amor indistinto, pois que todo bicho nasce pra ser estimado.
        A procria era motivo de festa e regozijo. Galinhas, gatos, coelhos e cachorros, que não sabem ter um filhote só, dificultavam um pouco as coisas porque nem sempre podíamos tê-los todos conosco e a despedida era sempre avassaladora. Meus irmãos, mais lacônicos, é que se ocupavam delas.
        Eu hoje me lembrei de como chamava as galinhas para a hora do milho. Eu repetia muitas vezes algo ensinado por minha mãe: Pirripirri Galinha Manquirri, Pirripirri Galinha Manquirri, Pirripirri Galinha Manquirri. (Se repetido assim, muitas vezes, pode ter efeitos hipnóticos e transcendentais. Enfim.) Afinal elas sempre corriam, com aquele jeito atrapalhado de galinha quando corre, ao meu encontro e eu terminava por alimentá-las com a certeza de que elas vinham porque essa era a língua possível e inteligível para elas, entre nós.
        Agora, entre humanos, e nos vãos das cidades, eu sigo procurando a língua possível e inteligível.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Retrato de uma ausência

     Um irmão fisgado inesperadamente pelo fio da morte pode ser reconhecido em lugares muitos. Em vãos. A esmo. Num recorte de patchwork visto de relance na roupa de alguém. No andar da formiga sobre a pele. Na fotografia escondida na gaveta. Nas cartas deliberadamente guardadas. Na audição de sua música predileta. Na memória de seu legado. Na palavra que se escreve. Na escolha por fazer. Na lembrança do amor herdado. Na ferocidade do tempo. Nos ermos que se perfazem.
     O retrato da presença/ausência de um irmão é indelével.
     Um irmão ausente pode para sempre ser encontrado.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

A vida não chega

        Fernando Pessoa fingiu seus heterônimos para fazer caber em algum lugar aquilo que não lhe cabia mais em si.
       Clarice Lispector deu voz a seus personagens femininos para fazer todas as perguntas impossíveis de serem respondidas, mas indispensáveis para se viver uma vida.
       Luigi Pirandelo em “Um, Nenhum, Cem Mil” nos diz do quão intrigante são as percepções que os outros fazem de nós, como o são também as impressões e certezas que temos a nosso respeito, para por fim notar que nenhuma delas parece coincidir exatamente com o que somos.
       Julio Cortazar inventou seus “Cronópios e Famas” para fazer a alegoria dos tipos humanos e suas atitudes diante da vida.
       Ítalo Calvino desenhou “ As Cidades Invisíveis” pelas quais podemos viajar e sentir melhor esse lugar onde habitamos.
       Elias Canetti iluminou e absolveu sua biografia criando “A língua absolvida” e “Uma luz no meu ouvido”.
       Cada um escreve sobre o modo como olha pelo vão da vida. E a lista de exemplos termina infinita porque, como afirmou Fernando Pessoa, “A literatura é a melhor prova de que a vida não chega.”

domingo, 25 de outubro de 2009

Para encher um domingo

Quase uma dúzia de imagens colhidas ao caminhar pelo domingo:
Uma caixa de correio presa à porta do cemitério.
Uma árvore cor-de-rosa.
Um corvo à Edgar Alan Poe procurando restos.
Um ganso lustrando as penas azuis.
Um esqueleto dócil sorrindo à janela.
Um varal com desenhos infantis preenchendo a sala de estar.
Um gato preto guardando a casa vazia.
Dezenas de abóboras enfeitando uma árvore púrpura.
Um pescador com seu barco às costas.
As árvores em seus trajes de gala outonais desfilando em tapetes de folhas.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A dona da terra

       Chamavam-lhe a Dona da terra. Ela não era tudo isso. Só tinha sob seu domínio um exíguo pedaço de chão, mas dava-o por grande coisa. Ninguém entendia muito os seus modos, as suas cores. Ela sempre postergava a abertura da porta antes de deixar a visita entrar. Se sozinha em casa Ela falava muito. Dizia ter um marido, mas ele nunca fora visto. Ela preferia conviver com os ratos à deixa-los expostos aos perigos de armadilhas que poderiam conduzi-los à morte por inanição.
      Ela era meticulosa em separar os restos de comida que entregava aos bichos, mas não se poderia adivinhar ao certo o padrão de organização  que empregava dentro da própria casa. Dispersos pelo vão da entrada, sala, cozinha e quarto estavam pacotes de compras não guardadas, louça por lavar, roupas, café amanhecido, perucas, ovos, manuscritos, flores secas, um relógio de parede à Dalí, batom,  pijamas, livros, grampo de cabelo e máquinas para fins variados. Caso alguém passasse inesperadamente sob sua janela, Ela certamente apagaria a luz para não ser vista. Mas isso os outros demoraram para notar e associar às razões de fato.
       Ela recebia adjetivos vários.
       Os que ansiavam por seus conselhos tomavam-lhe por: - “direita.”
       Quando aparava arestas entre vizinhos em pé de guerra diziam-lhe: - “justa."
       Aconchegando os falíveis na fé era a: - “crente fervorosa.”
       Se queriam colher frutas de seu pomar sorriam-lhe um: -“generosa.”
       Se careciam de sua ajuda diziam-lhe: -“gentil e pronta”.
       Se o que queriam era algum dinheiro emprestado floreavam dando-a por: - “de um coração sem paralelo.”
      Se era para arrendar um pedaço de sua terra gritavam: -“preço exorbitante, ladra.”
      Se Ela solicitava algo que lhe haviam tomado emprestado, arremessavam: - “egoísta de uma figa, sovina.”
      Se cobiçavam seus favores, galanteadoramente forçam um: -“bem dotada.”
       Quando cedia aos prazeres da carne, taxavam-lhe: -“safada.”
       Se não servia aos pedidos menos castos dos machos sedentos, atiravam-lhe um: “vaca.”
       A despeito de seus zelos, aconteceu certa feita de um vizinho vê-la na intimidade solitária da casa.
       - “Não, não poderia ser a mesma mulher de à luz do dia!”, pensou ele. Ela tinha uma fúria nos modos. Ares vampirescos. Sua cabeça era nua exceto por um ou outro montículo de cabelo longuíssimo em desalinho. Parecia velha como se já vivera em muitos mundos.
       Para salvar o vizinho, imobilizado em tremores e olhares invasivos, apagou a luz e deixou que ele seguisse. Ela restou sozinha na casa amornando ovos para o jantar. Desfaria o fogo antes que perdessem o visgo e beberia uma dúzia deles naquela noite.
        À espera do próximo adjetivo, ligou o rádio bem alto no seu folk predileto e, dançando em meio às luzes soturnas, adormeceu.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

As janelas

      Do alto da minha janela avisto as figuras do sem fim. Da janela há quem se ponha a espreitar os vizinhos ou simplesmente deixe-se e coloque-se a ver a vida passar entrecortada. Do vão da janela derrubam-se coisas, às vezes salvas por um fio  agudo e fino de vida que escorre. Da janela também se lança o suicida, no impulso de enfim agir e poder viver na sua escolha. As janelas nos salvam do desvario ou nos arremessam nele. Eu sempre consulto as janelas e tento adivinhar a cor do dia. Mas quase nunca acerto.
      A vida é um vão.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Porque a vida é um vão!

entre o pingo e a gota,
entre uma letra e outra,
entre nota e sinfonia,
entre texto e melodia,
entre o fio e a meada,
entre a porta e a entrada,
entre o cão e sua pluma,
entre linha, ponto, agulha,
entre o pó e a poeira,
entre o sangue e a veia,
entre o parto e o umbigo,
entre a dor e o alívio,
entre sonho e pesadelo,
entre a pele e o pêlo,
entre unha e cutícula,
entre irmão, parente e filho,
entre línguas, lábios, dentes,
entre um sexo e outro,
entre desejo e vontade,
entre fruta e caroço,
entre incisivos e caninos,
entre ovo e formiga,
entre o grão e a espiga,
entre a tulha e o moinho,
há um vão.