sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A dona da terra

       Chamavam-lhe a Dona da terra. Ela não era tudo isso. Só tinha sob seu domínio um exíguo pedaço de chão, mas dava-o por grande coisa. Ninguém entendia muito os seus modos, as suas cores. Ela sempre postergava a abertura da porta antes de deixar a visita entrar. Se sozinha em casa Ela falava muito. Dizia ter um marido, mas ele nunca fora visto. Ela preferia conviver com os ratos à deixa-los expostos aos perigos de armadilhas que poderiam conduzi-los à morte por inanição.
      Ela era meticulosa em separar os restos de comida que entregava aos bichos, mas não se poderia adivinhar ao certo o padrão de organização  que empregava dentro da própria casa. Dispersos pelo vão da entrada, sala, cozinha e quarto estavam pacotes de compras não guardadas, louça por lavar, roupas, café amanhecido, perucas, ovos, manuscritos, flores secas, um relógio de parede à Dalí, batom,  pijamas, livros, grampo de cabelo e máquinas para fins variados. Caso alguém passasse inesperadamente sob sua janela, Ela certamente apagaria a luz para não ser vista. Mas isso os outros demoraram para notar e associar às razões de fato.
       Ela recebia adjetivos vários.
       Os que ansiavam por seus conselhos tomavam-lhe por: - “direita.”
       Quando aparava arestas entre vizinhos em pé de guerra diziam-lhe: - “justa."
       Aconchegando os falíveis na fé era a: - “crente fervorosa.”
       Se queriam colher frutas de seu pomar sorriam-lhe um: -“generosa.”
       Se careciam de sua ajuda diziam-lhe: -“gentil e pronta”.
       Se o que queriam era algum dinheiro emprestado floreavam dando-a por: - “de um coração sem paralelo.”
      Se era para arrendar um pedaço de sua terra gritavam: -“preço exorbitante, ladra.”
      Se Ela solicitava algo que lhe haviam tomado emprestado, arremessavam: - “egoísta de uma figa, sovina.”
      Se cobiçavam seus favores, galanteadoramente forçam um: -“bem dotada.”
       Quando cedia aos prazeres da carne, taxavam-lhe: -“safada.”
       Se não servia aos pedidos menos castos dos machos sedentos, atiravam-lhe um: “vaca.”
       A despeito de seus zelos, aconteceu certa feita de um vizinho vê-la na intimidade solitária da casa.
       - “Não, não poderia ser a mesma mulher de à luz do dia!”, pensou ele. Ela tinha uma fúria nos modos. Ares vampirescos. Sua cabeça era nua exceto por um ou outro montículo de cabelo longuíssimo em desalinho. Parecia velha como se já vivera em muitos mundos.
       Para salvar o vizinho, imobilizado em tremores e olhares invasivos, apagou a luz e deixou que ele seguisse. Ela restou sozinha na casa amornando ovos para o jantar. Desfaria o fogo antes que perdessem o visgo e beberia uma dúzia deles naquela noite.
        À espera do próximo adjetivo, ligou o rádio bem alto no seu folk predileto e, dançando em meio às luzes soturnas, adormeceu.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sabe que cada conto teu(tu os chama assim?) que leio me remete ao Mia Couto. Eu tenho vontade, assim como quando leio os livros dele, de registrar todos os pedaços, porque cada pedaço é de uma "profundeza" de sentidos, que eu quero capturá-los para sempre na minha memória.
Querida, tu és uma escritora boa demais. Parabéns de novo e sempre. Se tivesse ou se tiver um dia uma editora, tu serás, além dos alunos da Trilhas, a primeira a ser convidada para publicar teus livros - Editora Trilhas. que tal?
beijos
Maria Inês