quinta-feira, 18 de novembro de 2010

De estrangeiros, interlocutores e prestidigitadores

               “E eu, menos estrangeiro no lugar que no momento” - O Estrangeiro, Caetano Veloso.
              Adoro essa canção porque provoca-me a ideia de que o sentimento de não-pertencimento e de estrangeirismo guarda mais relações com o momento que se vive e com as experiências que nos passam do que necessariamente com o lugar que se viaje.
             Sinto-me, portanto, estrangeira em mim, de mim, daqueles que me são mais próximos e familiares, ainda que estejamos em interlocução permanente.
            Afinal, interlocução é isso, provocar um pensamento impensado, disparatado. Bons interlocutores são como bons prestigitadores, difíceis de achar e fáceis de crer, porque ambos já “tem esse dom de saber iludir”, para citar Caetano de novo. E as semelhanças vão além. Em verdade um bom interlocutor te surpreende e arrebata porque te diz o menos previsível. Ensaiadas no palco da vida suas tiradas serão certeiras, viscerais e críveis à maneira de um prestidigitador. E tudo o que a gente mais quer diante de um deles é a ilusão de uma certeza, temporária, mas consoladora.
              Interlocutores e presditigitadores tem lá suas janotices perfeitamente aceitáveis, conferindo-lhes até alguma elegância.
              Eu tenho sorte porque meus interlocutores são os melhores possíveis. De idades, credos e escolhas variadas brindam-me com sua sagacidade, perspicácia, generosidade, virulência e incredulidade, tão necessária para que eu rememore quem sou.
               Há, claro, na palavra janota, um outro significado, este de tolice,  parvoíce, como o é por exemplo o sujeito que vejo caminhando no Passeio quase todas as manhãs, de terno, gravata e sapatos lustros pouco usuais para uma pista de exercícios. Mas ele se deixa levar pela própria marcha e acolhemos sua condição alienígena. Afinal, dos lugares e momentos que percorremos minha fiel interlocutora e eu, avistamos melhor nosso chibante estrangeirismo.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Açúcar bruto

           Nenhum doce é o bastante para apagar o fel que se espalhou. Careço de açúcar, uma urgência que nenhum tacho de melado, marmelada ou açúcar mascavo cozidos durante os invernos de eu criança foi capaz de desfazer.
          Vivi a honradez de ver nascer canas-de-açúcar, cortá-las, pilá-las, tomar-lhes as folhas e aprontá-las para o engenho, onde lhe sacaríamos o sumo que seria levado ao tacho. Esse saber-fazer impregnou-se em mim e eu tendo a acreditar que culinária é prima da bruxaria. Assunto sobre o qual pretendo escrever qualquer dia.
          Mas a vida no campo era distante da vida na cidade e o açúcar refinado era raro em nossa casa, reservado para alimentar o bebê ou compor os doces mais seletos. Não, aqueles ainda não eram anos de comercializar informações sobre dietas naturais e lá pouca informação chegava sobre o valor do que produzíamos. De modo que sim, eu já vira açúcar cristal, mas demorei pra notar que o açúcar bruto que fazíamos guardava em si a mesma origem do açúcar cristal, tampouco especulava sobre o que era um cristal.
           Entretanto, eu ia à escola e conduzi meu primeiro caderno à classe dentro de um saco vazio de açúcar cristal. Lembro-me, como se fora hoje, a transparência do plástico omitida pelo azul das letras grandes da marca CRISTAL, seu tamanho em relação a meu pequeno caderno e lápis. Era uma embalagem de 5 kg e, coincidência ou não, lembro-me perfeitamente da primeira lição que a professora anotou em meu caderno: preencher a primeira folha com o traçado do número 5. E fico até entendendo aqueles que gastam pequenas fortunas por uma embalagem antiga: eu adoraria ter alguma memória material daqueles anos.
           Naquele tempo eu me formava de brisa do campo, de uma alegria infantil por trançar folhas e galhos sob a sombra do mandiocal, do canto dos pássaros com quem eu dividia as melhores frutas da estação encontradas nos vãos altos das árvores e suas copas, de fazer de conta que montículos irregulares de açúcar mascavo eram balas, de esperar o regresso de meus irmãos, que iam à escola, à roça, à vida, para juntos enchermos as noites com as melhores conversar e jogos de adivinhar palavras.
           Será isso que Gabriel Garcia Márquez chama de nostalgia da nostalgia?

 

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Dentes

             Dentre as sementes, as aladas são minhas favoritas. Nada exercia mais fascínio sobre minha infância que arremessar dentes-de-leão e, em vão, tentar capturar cada um dos cursos que iam desenhar no céu.
              Mesmo hoje não resisto a colher dente-de-leão que se põe em meu caminho e, claro, sigo o ritual de fazer um pedido enquanto  os assopro (“Em que crêem os que não crêem?”).
             O dente-de-leão, quando flor imatura, até lembra, remotamente, a juba de um leão. Mas de resto distanciam-se. Acho a flor mesmo tacanha e sua altivez restará ínfima se comparada a do leão. Opinião sobre a qual ainda estou indecisa.
              E depois tem a palavra dente no nome. Dente, esta aí como fato dado, até o momento em que se vai ao dentista, mais por força do hábito que por gosto. Então, o que era um dente será um iceberg. E quando nem a anestesia amaina a dor, fica-se sabendo quão grande é um dente, esquadrinhando-o à sensação, que é o jeito menos mentiroso de medir, porém o mais intraduzível e não-padronizável.
              Eu lia outro dia Gabriel Garcia Márquez dizendo do quanto queria, em criança, que seus dentes fossem móveis, para que a tia pudesse escová-los enquanto ele brincava lá fora, à maneira que ela fazia com seus dentes.
              Dente também é aquele degrau que se instaura em móveis, utensílios e pequenos tesouros quando maculados. É presença fundamental em certas ferramentas para que se produza corte.
              Às vezes, portanto, não são só as ideias que estão fora de lugar. Palavras e sensações, porque em uso, nutrem-se, levianamente, daquilo que não deveria ser mais que mera predisposição.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Um

“A quantidade de certa coisa tomada isoladamente e por inteiro.”
“Diz-se de medida ou do que é contável.”
“Diz-se do primeiro elemento de uma série.”
“Designa pessoa, animal ou coisa que ainda não havia sido mencionada ou identificada no texto ou no diálogo, de duas maneiras: Com identificação imprecisa e indeterminada tanto para o locutor quanto para o ouvinte.Com referência precisa e determinada para o locutor mas não para o ouvinte.”
Tudo isso nos diz o Houaiss sobre o UM. E um também é:
Em contar-se: o início.
Em biologia: a célula primordial.
Em psis: o fundamental.
Na relação mãe-bebe: a aposta.
Andei mesmo desatenta. Não é que este espaço já completa 1 ano, 1 mês e lá se vão não sei quantos dias...
Achei que merecia, a despeito da irregularidade, comemorar com vocês! Então, Vivas!

domingo, 7 de novembro de 2010

Meu brado

             Há tempos que me pedem para que eu volte a escrever neste espaço. Nem são tantas pessoas, mas elas têm algo em comum: me  são  caras.  Escrever, contudo, tem sido evitado por mim como forma de não cometer nenhum tipo de exorcismo. A escrita sempre foi minha tábua de salvação. Outro dia fui à conversa entre  Carpinejar e Alberto Martins.  Depois de algum tempo ouvindo-os falar de seus papéis de escritores/poetas,  resolvi lançar-lhes a pergunta que aprendi a gostar de fazer: "- Que leitores são vocês?" Carpinejar respondeu-me com um aforisma, que lhe é tão próprio:  “eu leio pra me procurar, eu escrevo pra fugir de mim”.  Alberto Martins constatou que a leitura faz inchar o cotidiano e que lhe apraz  a experiência de tê-la expandindo seu dia-a-dia -  ao eleger um catatau para ler quando não se está de férias, por exemplo.  De minha parte arrematei com aquela frase do Drummond que adoro: “A vida quando vai aos livros é pra voltar mais vida”. Contudo, nestes últimos meses, houve aqueles em que nem pude ir aos livros e nem pude ir à vida. Movi-me inerte. Porque parar, e retomar a linha onde  o ponto fora esquecido, também é mover-se.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Receita de bem esperar

Faz-se assim. Quando chegar o final do outono e antes das primeiras geadas do inverno, deve-se recolher as ramas da mandioca, que já não terão folha alguma, e juntá-las em local protegido. Não precisa ser ao paiol ou à casa, basta cobri-las totalmente, com pendões secos de milho, por exemplo. Quando todo o inverno tiver passado e na hora exata, depois de arada a terra e prontas as covas, é necessário partir as ramas em pedaços da medida de um palmo. Abrigue  os pedaços  exatos de rama em seu avental e, andando por sobre a leira, deposite um pedaço de rama boa a cada espaço de um passo adulto, dois se você for criança. Com o seu próprio pé você deverá cobrir a rama e seguir repetindo o procedimento de jogar, cobrir, andar em frente até o fim do eito, para então retornar em nova leira. Depois de alguns meses as raízes já terão crescido o suficiente sob a terra. Sobre a  superfície um novo território terá surgido proporcionando sombra e deleite aos pequenos animais e às crianças, que gastarão longas horas imaginando mundos e trançando com as folhas da mandioca  os acessórios indispensáveis: mesa e cadeira, pratos e talhares. Mais alguns meses e você poderá arrancá-las para que sirvam de alimento, imprimindo força de duas mãos na base dos galhos, ali mesmo onde eles deixam a terra. Sob umidade, temperatura, força e inclinação ideal, você terá conseguido arrancar todas as raízes do pé de mandioca de uma única vez. Nenhum desses itens pode medrar, sob pena de uma ou mais raízes não se disporem a sair do abrigo terra. As raízes são então postas no cesto de bambu e levadas ao córrego, onde serão lavadas. Então, deve-se retirar a pele que a recobre e mais abaixo dela uma estrutura perfeita que se descola de cada pequeno cilindro em que se transformaram as raízes.  E surgirá a cor mais alva onde antes imperavam os tons ocre-avermelhados. Fácil agora: o fogão à lenha já deverá estar aceso para receber a panela com as mandiocas para o cozimento. Cozidas, podem ser degustadas acompanhadas do que lhe aprouver. Mas, desnecessário dizer, ela se basta. Não sei se plantar mandioca ensina a gente essas coisas de cidade. Eu só acho que ensina receita de bem esperar, de bem querer, de bem sonhar. E isso basta.

domingo, 6 de junho de 2010

A Velha da Curva

        Moravam numa beira de terra, exatamente onde a estrada batida fazia uma curva e encontrava-se com outro carreiro, de modo a formar uma encruzilhada. Encruzilhada, naquela terra de crentes, era ideia maculada pelo peso do destino, do incerto. Não podia ser bom.
        Ali, num eito sem dono, que lhe fora cedido para espiar culpas de riqueza e terras em demasia, moravam as duas. Da menina sabíamos ao menos o nome. Da mãe só conhecíamos os modos e os trajes repetidos. A boca sem dentes, o cabelo em desalinho, a vassoura em punho, as roupas cerzidas a mão, com ares de resto, fazia com que lhe vestíssemos mil caricaturas.     
       As habitantes daquele casebre visitado por parcas almas e raios de luz eram, para nós, a máscara perfeita do horror. O território desabitado da criança acaba preenchido com explicações fantasiosas que inventa. E a mulher facilmente ficou sendo a Velha da Curva.
       Tinha, nos limites do casebre, um enorme pé de castanheira, cujos frutos nós cobiçávamos avidamente, ano a ano. Para catar os bagos deixávamos momentaneamente de recear. Transfigurado o medo, catávamos tantos quantos podíamos. Ela nunca ralhou. Nem quando ao arremessarmos pedras à árvore estas caiam-lhe sobre o teto. Parecia acostumada àquela vida.
       À escola, Madalena era quase invisível. Só não era quando chegasse a hora de tripudiá-la. Nem quando Madalena se enchera de piolhos puseram-na em sossego. Encontraram-lhe o couro cabeludo em carne viva e ali a incapacidade de aprender. Anunciaram seu infortúnio, já iniciado em malsucedidos anos escolares.
         Um dia, quando estávamos  uma vez mais a caminho da escola, caía  chuva densa e a Velha nos convidou ao casebre. Ficamos tomados de horror e surpresa. Éramos seus convidados. Seu chão batido era limpo. No caldeirão suspenso sobre o fogo de chão, fervia qualquer comida. Ela estava acima de nossas suspeitas e tirania infantis.   Diante da inesperada visita, Madalena desenhava-se, furtivamente, tal qual uma menina, como nós. E a imagem logo esmaecia.
        A Velha da Curva, nunca abandonara sua casa. Naquele dia, girando a língua na boca banguela, ensinara-me o que Saramago ensinou-me hoje: “Para conhecer uma coisa é preciso dar-lhe a volta toda”.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Como comer fruta ou como medir o tempo

         Eu não sei comer um fruto só.  Gosto de comê-los por gênero e, se inicio, como vários. Em tempos de eu criança, conforme a estação, teríamos um ou outro fruto à exaustão. Quando acabavam, restava esperar que ano virasse e o ciclo se repetisse, vagarosa e sobressaltadamente, para tê-los em mãos outra vez.
        Alimentava-me de esperar que os frutos crescessem e mesmo tendo certeza de que ali não estivessem eu gostava de visitar os vários pomares que se espalhavam nos arredores de casa.
        Assim eu podia adivinhar flores nascendo, virando um grão de fruto ou fruto ganhando porte. Nunca me furtei a prová-los azedos ainda. Com avidez e sacrifício eu aguardava a chegada da suprema felicidade: o momento perfeito de devorá-los. Quando os passarinhos começassem a bicá-los os vazios seriam mais azuis, a existência mais tenra e as tardes  não doeriam.
         Aquela vida dispensava relógios.

domingo, 30 de maio de 2010

Pipoca

         Pipoca é um grão absurdo. Desde a infância exerceu sobre mim seus poderes e mistérios. Um grão que podia ser e não ser milho. Em verdade aquelas varietais que cultivávamos tinham quase um espinho na ponta de cada grão, dificultando a tarefa de debulhá-las a mão. Mesmo assim, diferente do milho que, só quando muito jovem ou moído, mostrar-se-ia tenro e gentil, a pipoca fazia-se mais dócil e macia quando à boca.
          Que os grãos estourassem, era puro nonsense. Mas a isso acresciam-se os mitos e jogos de palavras. Durante o ato de estourar pipoca nós crianças tínhamos que “por o dedo no umbigo e esperar embaixo da mesa”, diziam umas vizinhas. Tínhamos que “pensar numa fofoqueira”, diziam aquelas que não se julgavam merecedoras de tão controverso adjetivo. Tínhamos que “pronunciar repetidamente um trava-língua sentença: 'Estoura pipoca, Maria pororoca'”, durante todo o tempo até que cessassem as explosões.
         Mas aquelas não eram terras de pororocas. E por que o nome de minha mãe entrava, de lambuja, no enunciado?
        Gosto de pipoca, como gosto de abóbora, batata doce, cana-de-açúcar, milho verde e tudo o que remeta ao cardápio da vida no campo. Mas pipoca tem sua nobreza. Com ela se faz trocadilhos e adivinhas. Da flor à pedra inócua, cada grão porta um mistério.
        Arrebentar  pipoca é como viver a vida: pequenas explosões que se sucedem. Precisa-se do todo para ter uma noção do conjunto. Precisa-se da parte para não perder a noção de realidade. Nuances.
          Estalar pipoca é transformar um grão em monumento.
        Devora-se  uma  grande quantidade de pipoca para sentir-se momentaneamente completo, como de devorar ilusões se faz a vida.
         Pipoca é fugaz como felicidade e repentina como vida.
        
         O que é, o que é? Que pula pra cima e se veste de noiva?

domingo, 23 de maio de 2010

A divisa imprecisa

        O processo de aquisição de escrita em muito se assemelha ao ato de escrever em si. Superada a fase em que as questões ortográficas e a estatura da letra são os grandes dilemas, restará um outro tipo de ir e vir ao texto.
        Todo o escritor irá até o nu da palavra e a interrogará, querendo-lhe as vicissitudes. Quando minha aluna me perguntava outro dia se em nascimento cabia  c, s ou sc, pus-me a pensar que o nascimento da escrita não se faz sem interrogações intermitentes. Seja qual  for a natureza da pergunta.            
         O escritor aprendiz tem um zelo pelo desenho da letra, principalmente nas vezes primeiras em que se arrisca na letra bastão. E essa, intuo, é outra nuance eterna do ato de escrever: há que se desenhar uma ideia como se estivéssemos desenhando uma letra decisiva.
         O escritor aprendiz é extremamente minucioso com qualquer eira sobressalente, letra a letra, divisa a divisa.
         Como um aluno aprendiz de escrita, querendo que a letra seja exata, sob pena de significar outra coisa, o escritor adulto limpará o terreiro da escrita, palavra a palavra, retirando-lhe pedra solta, cisco, pó ou beira.
         O texto do escritor aprendiz é formado por ausências. O texto planeado do escritor adulto, abusará delas, requerendo a presença do leitor. O vazio será então uma estratégia do texto.
         O aluno aprendiz de escriba trafega entre modos de ler e escrever. Silabando, tateando, inferindo, adivinhando, surpreendendo-se, lendo. Migra da caixa alta para a cursiva, esforçando a letra, escrevendo.
         O escritor adulto, quase maquinalmente, escreve. Sua mente é que migra de si para si, para o mundo: silabando, tateando, inferindo, adivinhando, surpreendendo-se ao revés: lendo e escrevendo.
         Viver a aprendizagem da escrita diariamente, qual criança, muito pode ensinar ao escritor adulto.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

À parte

       Aquele homem, com os ares de urgência de sempre, não sabia chamar um filho só. Dizia, como lhe viesse à boca, o nome de todos. Menoscabava a primogenitura. Então, aquela filha, por ser uma das mais novas, permanecia sendo “Esta”. Depois de dizer: "Clara, Amélia, Maria", o último nome, o desejado, como que escapava-lhe à boca: “Esta”.
        Ela, em princípio, atribuiu tal atitude a espasmos de bom humor do pai. Raro. Mas depois cresceu. Viu que só poderia ser nomeada em presença dele. E ele não sabia chamar os filhos um a um.
        Corporificada, nominada só em pronome demonstrativo.
        Pai de todos, só poderia chamá-los qual corpus homogêneo.
        Os filhos, juntos, uma entidade.
        Isso fez influência nas maneiras  dela chamar sentimento. Numa série, qual escolher?
        Ela ficava horas olhando para a cor do dia, como se dentre matizes, pudesse dizer um nome. E sem nome que dar, atirava: “Esta”.

domingo, 4 de abril de 2010

Pelo feriado

Entre carros nervosos e transeuntes quaisquer,
Entre espectadores ávidos, disputando um lugar ao museu, e Andy Warhol revisitado,
Entre consumidores displescentes e uma avalanche de chocolate,
Entre concreto e ruído,
Entre garoa e imensidão,
O feriado de Páscoa em São Paulo também tem:
Trabalhadores dando plantão em dias que, alguns, chamam  santo,
Alienígenas e turistas deslumbrados,
Todos os livros que você quiser,
Meninos domando seus animais de estimação como se fora a vida no campo,
O Parque da Cantareira e bugios comendo brotinhos de folhas,
Borboletas brancas, azuis e verde-clarinho-com-bordas-pretas,
Capivaras no Horto,
Canto de cigarras,
Trinados de pássaros,
Silêncio.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Sem ocaso, a infância.

      Das memórias de infância importo palavras que habitam meu cotidiano. Hoje quis falar de algumas delas.
      Nas lides no campo, trilhava-se o milho. Trilhar o milho era separar os grãos do sabugo, da palha e dos pelos. Isso nos envolvia em uma nuvem de pó e em uma avalanche de grãos limpos e de cores vívidas saindo da trilhadeira. Era revigorante ver e mergulhar em tantos grãos frescos juntos. Hoje, parece que além de separar as coisas, como outrora era trilhar o milho, trilhar diz-se de escolher, de inventar um caminho, de percorrer um universo nem sempre facilmente navegável. Tatear um destino enovoado.
      Jogar carreira. Brincadeira simples que meu pai costuma fazer comigo. Depois descobri que esta era em verdade uma competição comigo mesma. Porque papai sempre desistia, às escondidas, logo depois da largada. Mesmo assim eu corria rápido para mostrar-lhe o tanto quanto eu poderia correr. Hoje carreira diz-se das coisas mais sérias, que envolvem formação, currículo e atuação. E faz-se mesmo um tipo qualquer de aposta com a própria sorte. E com as próprias forças.
       Costurar o eito: meu pai gostava dessa ideia de costurar o eito. Ele nos ensinava como era andar por atalhos. Ele nos ensinava como, cada um  capinando a sua parte, resultaria um eito pronto. Ele gostava de ir pelas beiradas, ora iniciando, ora arrematando o eito, dando a deixa pra gente atuar. Era um tipo de teatro. Éramos atores no palco cru da terra. Era uma grande colcha de retalhos feita a enxada.
       Estar a coser. Hoje falar em tecer, em tecido, tem um quê de moderno. Para mim é, uma vez mais, reavivar um tipo de memória originária. Em criança, a ideia de juntar as coisas, de dar forma aquilo que antes era um pano, de ver como as linhas saiam dos carretéis para se cruzarem e unirem no pé da máquina, operavam em mim grande fascinação. E eu gostava de ver o avesso do bordado feito por minha irmã e de ver os fios que restavam da costura. Porque a vida não se faz sem sobras e folgas e alinhavos.
       À corredeira. Estagiei minha infância em poças e valetas que exerciam sobre mim seus convites irrecusáveis a cada chuva. Feita de pequenas avalanches, poças e caminhozinhos ideados ao acaso, a vida segue. Em curso.

quinta-feira, 4 de março de 2010

De amuleto

Desenhado para fortalecer os descrentes.
Disfarçado em pendente, figura, medalha ou peça, atribui ao portador um tipo qualquer de sorte.
Transfigura-se em bicho, planta, palavra ou gente.
Em estados variados, qual manivela ou barco, propulsiona-nos adiante.
Algo que se carrega para fingir vida fácil.
Rememora a vida que nos arrebata.
Protege e arremete feitiços.
Produz experiência.

Eu, viagens cruzadas, meus dedos no destino.
Eu, dedos cruzados, viajo o destino. E você?

quarta-feira, 3 de março de 2010

Como mentir para própria memória

        É quase sempre assim. Eu esqueço. Há poucas coisas das quais eu consiga lembrar facilmente. Eu habilmente esqueço-me.
        A mim são úteis as companhias de pessoas cheias de memórias para dizer-me: “foi assim” e, às vezes, eu então até lembro que foi. Quando não, tenho que acreditar.
        Há histórias que gosto de saber de novo. Especialmente aquelas que dizem respeito a um tempo vago e difuso como é o da infância. Esse que cabe no “era uma vez”. Esse que cabe no “naquele tempo”. Esse que cabe no “quando vocês eram crianças”. E ficamos, meus múltiplos irmãos e eu, cabendo nesse lapso indeterminado.
        Quando auxiliada por minha mãe, eu avisto minhas memórias.
        Descobri outro dia  que o primeiro rancho que me formou ficava num eito de terra chamado “Da Saudade” e fiquei gostando. Aquilo é diferente de toda a cidade, porque meus olhos o fazem mais bonito. Do nascente ao poente, e assim se mediam divisas, era mata cortada por carreiros e sangas engolidas pela noite imensa. Se era a luz de uma noite estrelada permitiam-se serões.
        Outras vezes, é um irmão, uma irmã, que compila minhas memórias ausentes.
         Eu, de minha parte, acho que invento quase tudo. É como mentir para própria memória, oca.
         Ocupada em ser formiga, quase nem sei ser cigarra. Talvez um dia eu possa, como li aqui, pronunciar: “Casca oca, a cigarra cantou-se toda”.(Bashô)

terça-feira, 2 de março de 2010

Homenagem

       Li, dias atrás, esse poema que julguei ser perfeito para mim e para aqueles meus iguais no amor aos livros. Bom, hoje eu quis oferecê-lo, como homenagem, ao bibliófilo José Mindlin.

       ODE AMATÓRIA
                       Poema de Alexei Bueno

Meus livros amados,
Como trepadeiras
Sobem, apinhados,
Paredes inteiras.


Alargam seus flancos
Por cômodos, quinas,
E erguem-se em barrancos
Fabricando esquinas.


Lombadas, brochuras
Me olham das estantes,
Marroquins, nervuras,
Discretos, berrantes,


E neles me espiam
Gregos e sumérios,
Almas que extasiam,
Monstros deletérios.


Quinze mil amantes,
Bem embaixo, em cima,
Livro, o agora e o antes,
Palavra sem rima.


Que vida haveria,
Reles, pouca, porca,
Sem tal companhia,
Taça que se emborca.


Fólios, incunábulos,
Línguas e cidades,
Semblantes, vocábulos,
Desastres, vaidades,


Bulas, manuscritos,
Toda a espécie humana
Em grilhões escritos
Numa caravana


Que cruza o deserto
Nosso, soledade,
O longínquo, o perto,
O agora, a saudade,


De mãos dadas, nisto,
Filho, pai e avô,
Juntos Jesus Cristo
E o Doutor Petiot.


Sarabanda estática,
Vertical loucura,
Viagens, numismática,
Budismo, pintura,

E os autores todos,
Vivíssimos, mortos,
Ancestrais rapsodos,
Místicos absortos,


E entre os que pisaram
Nas poentas paragens
Os que em almas aram,
Tipos, personagens,


Todos, todos juntos,
E os florões, e espelhos,
Colofões defuntos,
Frontispícios velhos...


Que teria eu sido
Sem tal ebriedade,
Meu portão fendido
Para a eternidade,
       Para o imenso, a viagem
       Da alegria humana,
       Sem mais dor, voragem
       Que nos unge e irmana?

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Interlúdio

       Perdoem-me os leitores pela ausência de posts nas últimas semanas. Vou voltar. Talvez com menos frequência  que nos meses inaugurais. Não que a interrupção provisória dos posts fosse decorrente de algum ato furtivo permanente em minhas ganas de escrever. Mas eu continuo achando que escrever requer um tipo qualquer de sentimento que nem sempre se colhe. Escrita, e sentimento, não é inspiração, não é benesse, não é maturação, nem natureza. Eu acho que é uma flecha. Não é escolher, é ser escolhido. É um interlúdio. É um lapso. É uma urgência que interrompe provisoriamente alguma coisa inominada.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

A cidade nem liga

        Chove, inunda, constrói, desfaz, pinta, pixa, suja, limpa. A cidade nem liga.
        Transeuntes chegam e partem e enchem-lhe os vãos. A cidade nem liga.
        Mesmo em dias em que vivemos de sensações difusas, e quando a cidade ela própria se mostra diversa, constata-se.
        De volta à cidade, o forasteiro que estivera ausente pressente o inquérito:
        “É bom voltar?” Pergunta-lhe o curioso.
         “Nada como voltar!” Impõe-lhe o mais taxativo.
         “De volta à vida real...” Insinua outro, a espicaçar-lhe a memória.
       E assim, de frases prontas e cheias de efeito e de encontros inesperados, se vai fazendo a volta do andarilho sobre a terra.
       A cidade nem liga.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Eu, meu país

Eu começo o dia, vagaroso.
Eu musico a caixinha, papel a flores.
Eu dou corda ao som, cor do dia.
Eu acordo a fome, sedenta.
Eu apaziguo lembrança, incauta.
Eu comemoro memória, antiga.
Eu falo muito, silêncio.
Eu viajo meu país, cidade e campo.
Eu adormeço, saudades.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Em clima de despedida

            Despedida é uma palavra nem sempre gostável. Mas talvez devesse ser. Afinal para poder receber ou dar os cumprimentos a quem sai de um lugar é preciso que se tenha ido a algum lugar e isso, por si só, já é grande coisa.
             A questão é que nem sempre queremos renunciar a algo. Nem sempre queremos que a coisa finde.
             Mas o bonito da palavra é que ela implica a ação de cessar, logo, pressupõe que fizemos algo e que deixaremos de fazer. Para substituir o que deixamos, haveremos de inventar algo novo.
             A palavra despedida também contém em si a ideia de “arremessar, lançar de si”. Eu gosto dessa imagem de ser lançado em outras plagas, de se arremeter no destino.
             Hoje é dia de despedidas. Estou deixando as terras aqui do Norte e retorno ao meu país com um universo de experiências memoráveis.
             Difícil dizer adeus para os que aqui ficarão. Fácil e prazenteiro rever velhos amigos.
             Até o Brasil, então.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Eu, fado

        Sorte pode-se: dotar, combinar, acolher, merecer, predestinar, fadar, receber, prenunciar, adivinhar, prognosticar, predizer, ter, desejar, pedir, partilhar, doar, viver.
        Tudo sortido dá: boa sorte.
        Nunca foi tão fácil ter um pouco a mão. Para usar. Para oferecer.
        Por seu caráter diverso, contudo, sorte vem sem manual de instruções. Mas quem se atreveria a pedir um?

sábado, 16 de janeiro de 2010

Pirripirri Galinha Manquirri

       Eu tive pelo menos algumas centenas de bichos de estimação. Porque enquanto eu crescia, vivendo numa fazenda, todos os bichos que tínhamos eram meus bichos de estimação.
       Depois, quando fui morar à cidade, é que aprendi o dizer de bicho de estimação, coisa que me intrigou da vez primeira e continua. Porque bicho na cidade é diferente de bicho no campo. Os bichos no campo gozam de muito espaço, tem obrigações estabelecidas e ocupam um status específico na hierarquia do labor e prazer.
       Com exceção de um par de galinhas de angola, nenhum outro animal da minha infância tinha esses ares de ali estarem para embelezarem o terreiro ou simplesmente encherem nossas vidas com seus modos e trejeitos, quase sempre um misto de calmaria e rompantes efusivos de alegria animal. Em verdade eles eram muito mais do que isso.
        Além dos papeis esperados de um bicho de estimação, os animais de minha infância aravam, puxavam, rompiam, moviam, tracionavam, saltavam obstáculos, venciam distancias, transportavam-nos, protegiam-nos, livravam-nos de pragas, alimentavam-nos e enchiam as nossas vidas. Eles eram zelados, alimentados, acariciados e estimados por nós. Nutríamos por eles um amor indistinto, pois que todo bicho nasce pra ser estimado.
        A procria era motivo de festa e regozijo. Galinhas, gatos, coelhos e cachorros, que não sabem ter um filhote só, dificultavam um pouco as coisas porque nem sempre podíamos tê-los todos conosco e a despedida era sempre avassaladora. Meus irmãos, mais lacônicos, é que se ocupavam delas.
        Eu hoje me lembrei de como chamava as galinhas para a hora do milho. Eu repetia muitas vezes algo ensinado por minha mãe: Pirripirri Galinha Manquirri, Pirripirri Galinha Manquirri, Pirripirri Galinha Manquirri. (Se repetido assim, muitas vezes, pode ter efeitos hipnóticos e transcendentais. Enfim.) Afinal elas sempre corriam, com aquele jeito atrapalhado de galinha quando corre, ao meu encontro e eu terminava por alimentá-las com a certeza de que elas vinham porque essa era a língua possível e inteligível para elas, entre nós.
        Agora, entre humanos, e nos vãos das cidades, eu sigo procurando a língua possível e inteligível.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Esquecer-me

        Às vezes tenho vontade de também contar histórias.   Habituei-me a anotar a vida e vou guardando pedaços de sentimentos,  impressões, cores, texturas, excertos e imagens que recolho e elas me formam. Tenho dificuldade de jogá-las fora porque parece que vou esquecer-me (de mim?).

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Dos objetos perdidos

        Nessa estação, em terras do Norte, é muito comum encontrar luvas perdidas.
        Eu sempre fico intrigada diante de uma luva perdida. Porque ela está aí, ao léu. Ela, que outrora aconchegou e protegeu, agora virou um trapo encharcado e sujo. Se olharmos bem adivinharemos as cores que lhe compunham. Outras vezes veremos que alguém já se deteve diante dela e, solidário, recolheu e expôs esse que agora virou objeto do esquecimento. Ou seria do desaviso? E logo a luva perdida é bandeira do incauto sobre um mastro improvisado. Haverá o dono de recuperá-la? Escolherá novamente aquele caminho?
         Há quando a luva que se encontra ser objeto de perda recente e ela ainda terá todo o glamour que lhe cabe. Disso se pode desconfiar pelo status da matéria, pelo ares inaugurais da sua queda desenhada na superfície ou se pode adivinhar por suas beiras ainda quentes. Ela, aí ao chão, dá mostras de despojo e altivez.
         Para que serve uma única luva? Que desígnios lhe reserva o destino? Ultrajada pelo tempo, pela condição, pela ideia de inutilidade e falta, restará desprezada? E a alegria do dono ao reencontrá-la? Como se mede?
        Pra que serviria uma estatística de quantas luvas perdidas são reencontradas? Para que serviria um inventário do destino das luvas perdidas ou então das luvas que restaram solitárias? É provável que não servisse pra nada! Mas como é vasto e adorável o escopo dessa categoria!

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Caderneta de anotações de domingo

        Encontrei uma luva perdida. Uma luva perdida é uma alma solitária.
       
        Vi um morador de rua que se prolongava na preguiça matinal sobre a cama improvisada no coreto da praça. Sob panos, mantas e cobertas ele lia compenetradamente enquanto o coreto emoldurava o amor pelo livro.
                  
        A menininha entrou no ônibus e, vendo que todos ofereciam seus passes de ônibus (ou ocasionalmente moedas) ao motorista, achou por bem oferecer-lhe o saco de doces que carregava com dedos melados e olhos satisfeitos.

       Chovia a cântaros e um leitor caminhava apressado enquanto lia o jornal sob o guarda-chuva. Sonharia ele suplantar o tempo?
        
       Encontrei uma versão de dente-de-leão. O pretexto perfeito para, como fazíamos em estado de criança, inspirar fundo, fazer um pedido e sonhar um desejo enquanto  as sementes  aladas se dispersam.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Chá para Benjamin

       Junto com ano novinho em folha e inteirinho para ser inventado, por quem assim ousar fazer, chegou Benjamin.
       Então o primeiro post de 2010 não poderia ser mais cheio de esperança, ternura e alegria, tudo o que uma vida recém descoberta contém em si (e do que nós andamos todos tão precisados)!
      Agora é chá de boasvindas ao Benjamim e, em função de algumas milhas, não pude atender ao evento. Mas preparei meu próprio chá de quereres e ofereço-lhe!
      Benjamin:
Que os seus pais sejam os mais ternos.
Que os seus avós sejam presentes.
Que você curta suas irmãs.
Que você coloque as mãos, os pés, na Terra e se apaixone por ela.
Que você seja levado para conhecer pomares e parques.
Que te deixem tomar banho de chuva.
Que você faça coleções de achados do chão.
Que te preparem chazinhos quentes.
Que você seja formado em afagos e ternuras.
Que te leiam histórias variadas.
Que você goste das pequenas criaturas.
Que você saiba amar seus pais e respeitar a sabedoria deles.
Boa jornada rumo aos nascimentos, Benjamin.
Vivas!!!
Acaricia-te,
Silvia.