segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Das pequenas mortes


          Havia uma lei não escrita, mas imperialmente conhecida e aceita, que mulher pra poder casar havia que saber puxar orações, rezar o terço inteirinho, coser, bordar e engomar todo o enxoval, com tal zelo que os dotes pudessem ser mostradas a toda gente. Havia que saber olhar a lua e o tempo certo de atirar sementes à terra. Havia que saber de onde soprava o minuano e quando não era pra podar galho. Tinha que saber de guardar rama e grãos pro tempo de replantar. Também havia que ser prendada, e de tudo um pouco saber fazer. Era costume que da mãe se herdasse uma máquina de costura, fosse manual, de pedal ou ainda de pedal elétrico, mas isso foi bem mais tarde.
        No tempo em que Ela ganhou a primeira Boneca das mãos de sua Madrinha, já sabia que mulher tem uma coisa assim: sofre, angustia, chora, joga tudo fora, arruma o cabelo, passa um batom pink vermelho e sai para passear. E à medida que sai a cor do beiço, mais tarde corrói por dentro, nauseia.
         Aquela sua Madrinha trabalhava fora, era cheia de opiniões, enfrentava impavidamente o marido e, quando decidiram ir morar no centro do povoado, inaugurou sua chegada arremessando a frigideira pela janela do rancho em um ataque de gana pelos disparates do cabra. Tentava buscar saídas. Era, enfim, uma Madrinha e por isso Ela nunca se importou. Gostava daquela mulher em tudo o que pudesse ter de atípico. E a mesma comoção e sentimento que nutria por outros seres miúdos ou indefesos, a mesma vereda que enrubescia a alma quando alguém era humilhado, Ela experimentava por sua Madrinha.
        Ela queria se salvar como boneca precisa ser salva do esquecimento, das desilusões e vontades incautas. Talvez por isso Ela, quando foi morar à cidade grande, levou consigo a Boneca mesmo temendo que ao arrancá-la do lugar onde deram-se a conhecer fosse algo parecido com tirar de vez a própria alma do quintal onde nascera.
       Usava um tom assim. É provável que fosse verde com pequenas nuances circulares em branco, o cabelo esvoaçante mas ordenado, do modo como Ela quisera que lhe tivessem arrumado quando criança. Passados tantos anos e aquela Boneca agora ali, ora impunemente sentada na cabeceira, ora deitada ao chão, ora atirada sobre a cama, pondo uma e mil recordações, avassalando a mente. Quem a visse assim, de olhos tão abertos, com cílios bem definidos e a menina dos olhos a ditar o contorno, jamais poderia supor que fosse simplesmente uma, mas que para Ela.

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