quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Esboços de duas figuras por aí afora

           E por falar em não perder o juízo, Ele matutava coisas estranhas, parece que sonhava a realidade. Descobriram que Ela tinha completa aversão por naftalina e outros aromas assemelhados.
          Ele jamais se separara de seu isqueiro porque abominava caixas de fósforo, ou qualquer coisa que remetesse ao cheiro, aos restos. Quando, acidentalmente, encontrava uma fagulha ou palito, corria preciso, desinfetar as mãos com muita água corrente saída da bica, depois com álcool e por vezes repetia uma vez mais todo o processo.
           Cochichavam que Ela, esporadicamente, arrumava o velho baú. Tudo que trouxera quando chegara por aquelas cercanias. E, cautelosamente ordenava retalhos, fiapos e roupas antigas, estabelecendo uma classificação qualquer que hora era a cor, hora o equilíbrio do todo que determina o fim.
          Quanto a Ele, palpitavam que gostava de repetir adágios e com eles inventar histórias palavreadas de imagens fortes e nem sempre clarividentes.
           Impressionavam-se.
           Os que a conheciam também supunham a fascinação dela por galinhas, que em geral não costuma ser bicho de estimação. Só Ela distinguia  a meiguice das penas sobrepostas: nacaradas, avermelhadas, ocres, carijós, alvas, negras e quando achava uma ou outra perdida, podia dizer a qual parte do corpo pertencia, só pelo cheiro da dor.
          Nunca souberam se Ele tinha ou não dotes culinários, tampouco confirmaram seu pactos com o tinhoso, embora de sua chaminé sempre escorresse para o céu um miúdo fio de fumaça preguiçosa e sua aura causasse estranheza a olhares apressados.
         Ela gostava de apertar úbere de vaca e pronunciar a palavra urubu, assim u-ru-bu, pausada, laconicamente, e pensava como aquele Deus pudesse ter criado olho de gente, que é assim tão oblíquo, e um bicho que se prestasse a comer tudo o que os mais velhos nomeavam carniça.
        De uma feita, Ele queria construir um rancho no sopé da montanha, onde esta se dobrava e uns ariticum amarelavam em cada quaresma. Dizem que Ele chorava copiosamente quando. Viam-na chorar sim, mas de tristeza mesmo, solidão ou raiva. Coisas que Ele parecia não sentir.
           Houve um dia, Ele chegou da vila trazendo-lhe presentes e uma fabulosa máquina que diziam poder cantar bonitezas, mas uma parte dos presentes deixou no caminho, que a mula não venceu o eito. Ela nunca lamentou. De certo que não só a mula fosse dada à resignação.
            Ela ignorava a falta de bons modos com que Ele costumava portar-se quando estavam a sós, em andanças, mas ninguém supunha, posto que Ele era bem esperado em cada alambique da cercania.
            Vingou uma vez a lorota de que Ele se entregou à bebida, cansado que estava de macerar, picar, mascar e cuspir o rolo do fumo forte. Meteu medo em toda gente, seu braço e o tamanho da sua bainha. Um solteirão, que morava no borda do poente, teria avistado-o sacudindo os pelegos depois de levar a si a ao estimado asno por barrancos indesejados.
           Ela crescia, dissimulada e comedida, enfurnada em moldar quimeras.   
            Ele deixou de ser visto, uns diziam que havia caído em sono profundo e escondia-se dentro da própria casa, abandonando a cama só até alcançar o cabo do penico e umas miudezas quaisquer por alimento.
           As vizinhas, destilando inveja mordaz, costuravam horas e inventavam-lhe destinos obscuros e fantásticos acreditando que Ele fugira, cansado da solidão a dois e dos poucos dotes dos quais Ela se servia para agraciá-lo.
            Ela nunca gostou de ver bicho sofrer, porque era nela que doía. A dor de uma paulada certeira representava-lhe mais ameaça, mesmo que fosse para se defender de cobra venenosa, lagarto, ou impingir vontade à mula quando arar a terra ou conduzi-los ao bugre era questão. Nunca gostou que ralhassem com Ela, preferia calar ou falar muito.
            Gostavam era de ver cantar passarinho, mas com silenciosos berros Ela queria que Ele acudisse o destino.
            O silêncio era o arrimo de ambos.
            E Ele e Ela de repente achavam-se juntos sem que nem um, nem outro, tivesse que dizer: senta comigo.

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